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Detalhe da célebre foto “Wait for me Daddy”, durante a partida de um regimento canadense para a Segunda Guerra Mundial.
Detalhe da célebre foto “Wait for me Daddy”, durante a partida de um regimento canadense para a Segunda Guerra Mundial.| Foto: Claude P. Dettloff/Domínio público

“A coisa mais extraordinária do mundo é um homem comum, uma mulher comum, e seus filhos comuns”, dizia o escritor G.K. Chesterton. Mas um bem tão primordial e extraordinário como a família também implica, por outro lado, numa série de riscos e mazelas sociais que emergem em cadeia, um na sequência do outro, se deixamos que ela seja desfigurada e afastada dos seus belos fins. “Quanto maior o bem, maior o mal que da sua inversão procede”, dizia Rui Barbosa a respeito daqueles bens superiores que ocasionam grandes danos quando são subvertidos ou sabotados na sociedade. Contudo, antes de nos aprofundarmos nessa questão, precisamos entender o que a política, num sentido amplo, tem a ver com a vida privada das famílias, e por que deve se preocupar com elas.

A política do bem comum pressupõe a subordinação da ordem social à plena realização humana e, consequentemente, à ordem moral. Isso significa dizer que não podemos fazer o que bem entendermos com as instituições de governo – e com a sociedade sujeita a elas. É preciso orientá-las sempre conforme a reta razão que nos informa a lei natural e nos permite discernir o certo e o errado, o justo e o injusto, o que é sensato e o que é temerário.

Todo homem sensato, político ou não, precisa desconfiar das soluções fáceis e mágicas. Por isso sempre é bom ter um pé atrás em relação a ideias como “imprimir dinheiro”, “controlar preços”, “regular a imprensa”, “coletivizar propriedades”, “estatizar empresas”, “dar o calote nas dívidas públicas” etc. Essas medidas nunca deram certo. A história é mestra da vida, já afirmavam os antigos. E é útil aprender com os erros do passado e “seguir a natureza [isto é, a realidade natural das coisas] em vez das nossas especulações”, como dizia Edmund Burke.

Cada grande estadista que foi digno desse nome pensava no bem comum no longo prazo e nos que hão de vir, pois estava consciente de que a sua missão transcendia o seu tempo e demandas imediatas. Por isso Burke censurava a soberba dos revolucionários que decretam políticas ousadas “sem se importar com o que receberam dos seus ancestrais e com o que é devido à posteridade”. O bom político é também atento às realidades particulares do povo no nível particular das famílias e suas comunidades locais; não cede à tentação de trabalhar apenas pelo engrandecimento de uma coletividade abstrata, assim como não pensa em servir apenas à sua própria geração.

Seria deficiente, de igual modo, um Estado que pretendesse apenas prover segurança pública e alguns serviços básicos, contentando-se em dar condições ao cidadão para a livre persecução dos seus desejos individuais. O bem comum não se reduz a isso, como já vimos no segundo artigo dessa série. E tampouco estaríamos bem servidos por um Estado utilitarista que quisesse somente prover meios para o desenvolvimento material e econômico da população, sem se importar com aquelas necessidades do ser humano que são imateriais.

Viver em família é um bem particular e imaterial que se destaca entre os pilares do bem comum. A união entre um homem e uma mulher que formam uma sociedade conjugal é a origem e o fundamento da sociedade civil. Ali temos a sua célula primeira e constitutiva, o tijolinho que constrói castelos e catedrais de belas histórias. É ali que nasce a possibilidade de uma nova jornada, uma nova vida humana, uma nova vocação, um novo dom para o mundo, quiçá um novo mestre, herói, inventor ou santo. Cada família traz em si o potencial para um mundo melhor, pois representa uma nova promessa, um sinal de esperança, como as chuvas depois da estiagem, a florada de uma lavoura que precede a granação dos frutos ou as caixas de presentes ao pé de uma árvore de Natal.

As coisas belas e admiráveis atraem por sua própria natureza e nos inclinam a querer preservá-las. Por isso a sacralidade e o extraordinário potencial para o bem que emanam da realidade ordinária de uma família nos fazem querer defendê-la e promovê-la. Pois desejamos que ela tenha sucesso existencial, que os seus membros se realizem e deem ao mundo os frutos que prometem, os dons dos seus talentos, da sua vocação e das suas virtudes.

Quando as famílias vão bem, a sociedade inteira caminha bem. Por outro lado, tudo o que afeta e enfraquece o alicerce familiar também termina por transtornar a sociedade de algum modo. Qualquer mãe brasileira que já teve de lidar com um marido alcoólatra ou um filho transviado por más influências concordaria comigo. Por isso, não podemos aceitar a legitimação do radicalismo ideológico que prega, às vezes até abertamente, o fim da família natural – embora prefiram, muitas vezes, chamá-la pejorativamente de “família burguesa”, “cristã” ou “heteronormativa”.

A tarefa de criar um ambiente social saudável passa pelo fortalecimento da família e pela difusão de bons modelos familiares que sejam referência e nos quais todos possam se espelhar – o contrário, aliás, do que há décadas é feito pela teledramaturgia e pelo cinema nacional. Se a família tantas vezes tem sido alvo de um “discurso de ódio” (para usar uma terminologia deles próprios), esse discurso não pode contar com o nosso silêncio, com a nossa aceitação tácita deste projeto de desconstrução familiar. Isso vale inclusive para as grandes marcas e seus anúncios “lacradores” que ambicionam formatar a mentalidade de jovens e crianças. E também para os projetos de lei e políticas de Estado que venham a minar, por exemplo, a união entre os esposos, como os projetos que tendem, direta ou indiretamente, à facilitação do divórcio, à legitimação da “união poliafetiva” e ao desestímulo do matrimônio.

Medidas revolucionárias que atentam contra a família sempre trouxeram graves consequências para o bem-estar social. Ninguém ignora, por exemplo, o mal causado por governos tecnocratas que tomam para si o dever e o direito exclusivo de educar os mais jovens. Hoje também já se discute a confusão traumática sofrida por crianças que foram doutrinadas na ideologia de gênero ou expostas a exibições sexuais explícitas, como recorrentemente se vê em “paradas de orgulho” e “museus de arte moderna” por aí. São situações não somente inadequadas para a idade delas, mas contrárias à própria razão de ser da política e de toda sociedade sã. Da mesma forma, o estímulo ambiental ao uso de drogas e o aliciamento de jovens para os vícios e para a criminalidade são práticas per se condenáveis, uma vez que revertem em total detrimento do bem comum.

É fato: o que atinge negativamente as famílias atinge também a comunidade, prejudicando, por um efeito dominó, toda a cidade e, em seguida, o estado e a nação. Pais menos presentes na vida dos filhos, ou descuidados na sua tarefa de educar, podem acabar originando uma geração menos consciente do ponto de vista moral e, logo, mais inclinada a práticas de corrupção, por exemplo. É bastante lógico, portanto, que toda e qualquer realidade hostil à integridade das famílias deveria ser combatida com vigor, nunca ignorada como coisa fortuita ou aplaudida como “expressão cultural” alternativa. Com efeito, se a nossa obrigação de cuidar do bem comum abrange desde o refúgio familiar até aquelas decisões – da mais ampla implicação – tomadas em Brasília, tudo o que ataca este núcleo mais elementar do corpo social não pode ter a condescendência do poder público.

Ao Estado cabe, sim, responder corajosa e exemplarmente aos assaltos contra a sanidade moral e psicoafetiva das famílias, bem como implementar políticas que favoreçam o bem delas, uma vez que o matrimônio e a família são, nas palavras de São João Paulo II, “um dos mais preciosos bens da humanidade”. O professor e escritor americano Thomas Storck defende políticas governamentais que, por exemplo, tornem possível aos pais exercer a sua profissão em locais próximos de onde vivem suas esposas e seus filhos. Pais que trabalham perto do lar são mais presentes e, consequentemente, fazem suas famílias mais felizes. Hoje muitos se veem obrigados a passar longos períodos de tempo distantes de suas casas por causa da profissão, o que “obviamente gera desgastes na família e tentações para maridos e esposas” ao enfraquecer o vínculo afetivo entre eles. Situações como essa não devem passar ao largo dos cuidados que o Estado deve ter pelo bem comum.

Os que têm ciência das coisas que realmente importam na política e na vida em comunidade, do impacto que essas coisas têm na família de cada um, devem se dispor a dialogar e informar os que desconhecem esses fatos.

No entanto, é preciso cuidar também para que não haja intromissões estatais inapropriadas no seio familiar, pois a família constitui “uma sociedade que goza de direito próprio e primordial”. Ela deve ser respeitada na sua esfera de legítima autonomia e auxiliada pela autoridade pública conforme o princípio da subsidiariedade ao qual aludimos no terceiro artigo sobre a política raiz.

É claro, porém, que é muito mais fácil, pensando agora a partir da perspectiva do cidadão comum, que ele tente solucionar os problemas particulares da sua própria família do que se inteirar sobre a política nacional e engajar-se nas batalhas pelos bons valores em nível mais geral. Mas uma coisa não impede a outra. Aliás, o filósofo político Leo Strauss notava que as pessoas tendem a adotar no mundo moderno uma espécie de “sanidade no varejo e loucura no atacado”. Isto é, elas geralmente têm mais cuidado e são mais criteriosas com as coisas banais do seu cotidiano prático – escolher um investimento seguro para aplicar suas finanças, por exemplo – do que com a validação social daqueles princípios que acabam por moldar toda a vida civil e realmente terminam por fazer toda a diferença na vida das famílias. São austeras na limpeza da garagem e desleixadas em conhecer os impactos do funk na cultura dos jovens ou as diretrizes pedagógicas que orientam a educação escolar no país. Não raro, há cidadãos que são conservadores dentro de casa, mas se mostram “progressistas” num nível macro. “Encontramo-nos, pois, na condição de seres sóbrios e sensatos quando envolvidos nos afazeres triviais, mas que se entregam à mais desvairada jogatina quando confrontados com questões sérias”, criticava Strauss.

O remédio para essa atitude paradoxal – e nada antenada com o bem comum – passa, certamente, por um maior empenho de participação no debate público e por um maior esforço de persuasão da parte daqueles que já estão razoavelmente esclarecidos quanto à hierarquia dos valores. Os que têm ciência das coisas que realmente importam na política e na vida em comunidade, do impacto que essas coisas têm na família de cada um, devem se dispor a dialogar e informar os que desconhecem esses fatos. Porém, essa questão da participação política é importante demais para ser tratada “de passagem”ainda neste artigo. Voltaremos a ela num próximo texto.

Valdemar Bernardo Jorge é professor, advogado, mestre em Direito Econômico e Social e secretário de Planejamento e Projetos Estruturantes do estado do Paraná.

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