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Política, religião e fé: o legado da democracia no protestantismo
| Foto: Pixabay

Não são poucos os estudiosos que reconhecem a importância da Reforma Protestante para a constituição do mundo ocidental moderno. Seu impacto se faz sentir nas relações internacionais, no comércio, nas artes, na indústria e na política. Neste campo, especificamente, sua importância foi reafirmada por cientistas políticos de renome – e com diferentes orientações ideológicas – durante o século XX, como Eric Voegelin, Michael Walzer, Christopher Hill e Herman Dooyeweerd.

Num ambiente opressor, monárquico, desigual e de muitas misérias, os teólogos reformadores a luz do texto sagrado e com seus profundos conhecimentos começaram a desenvolver o pensamento social, econômico e político que mudaria não somente a Europa, mas também a América do Norte, conhecida como “A Nova América”.

Talvez você se pergunte: O que religião ou fé tem a ver com política? Tem tudo a ver. Uma porque a religião é formada por pessoas que possuem uma vida pública. Por isso, a importância de entender que não existe ninguém que seja apolítico. Ser apolítico não é deixar de tomar posição. Ser apolítico já é uma posição em si – uma opção para fora, uma opção pelo não ser, uma opção pela omissão. A omissão é um voto permanente e reiterado em favor ou contrário a medidas, governantes, partidos ou regimes. O voto por omissão é tão responsável, tão culpado, quanto o voto consciente. Com exceção do alienado mental, do indígena (que vive a política da tribo) e de alguns rurícolas (cultural e especialmente isolado), o apolítico (alienado político) é consciente e deliberado em sua opção pela omissão, sendo, por conseguinte, corresponsável pelos resultados para os quais concorre com sua postura.

Mas o que de fato o protestantismo pensa sobre política? No protestantismo entende que a ligação da Igreja com o estado é zero. Sim, mas o cristão não pode estar em momento algum isento de toda movimentação socioeconômica do país. Principalmente quando se trata do futuro da nação. A eleição de um tirano deve mobilizar o cristão para uma atitude radical para conscientizar a população dos riscos que virão. As esferas de poder são diferentes. Na igreja o poder é Divino. Deus governa e rege toda a estrutura da Igreja. No âmbito secular, o estado é regido por homens que são estabelecidos pelo próprio homem. O estado está para beneficiar o povo. Na compreensão protestante, o estado é instituído por Deus para governar a sociedade visando o seu bem-estar. Um governo que não atende as necessidades básicas do povo, não pode ser considerado um governo real.

É preciso destacar duas vertentes sobre a presença e a formação de um governo: 1) A sua razão de ser é, criar um ambiente aonde o indivíduo venha a crescer, viver em paz e progredir na sua vida como um todo; 2) O estado deve fazer justiça contra os maus, aplicar corretamente a justiça, zelar pela segurança da nação e contribuir para o progresso de todo o povo.

Na visão política-teológica protestante emerge o personagemLutero que foi o primeiro a contribuir para o desenvolvimento político-cristão no auge de toda reforma protestante. Mas Lutero não ousou tanto na sua visão teológica da política. A sua interpretação bíblica não permitiu que ele tomasse o rumo que João Calvino e outros tiveram. Lutero não havia se desprendido totalmente das amarras da Igreja Católica. Ele defendia a total passividade do povo que sofria nas mãos de homens tiranos. A sua amizade com alguns príncipes, talvez, possa ter influenciado as suas posições teológicas e políticas. Mas Calvino quando surge no cenário pontua aquilo que pode ser considerado a base de todo pensamento protestante na vida pública. Ele entendia da seguinte forma:

Isso porque, ao explicar os deveres dos magistrados, minha finalidade não é tanto a de ensinar aos próprios magistrados, quanto à de ensinar aos outros o que são os magistrados e por que motivo Deus os instituiu. Vemos, portanto, que eles foram designados protetores e defensores da inocência, propriedade, honestidade e tranquilidade públicas e que seu único empenho deve ser o de garantir a paz e o bem-estar. Davi declarou que, uma vez alçado ao trono real, ele evidenciaria a todas essas virtudes [Salmo 101]; isto é, que ele não seria participe em qualquer crime, mas odiaria os perversos, os caluniadores e os de olhar altivo e coração sombrio e procuraria por toda a parte ministros íntegros e leais [Salmo 101]. Mas, uma vez que os magistrados não podem desempenhar as tarefas a eles designadas a menos que protejam os homens bons das injustiças dos maus e defenderem os oprimidos, eles foram armados com o poder para reprimir os que praticam o mal e os criminosos, cuja iniquidade perturba a tranquilidade pública [...] Isso porque, em muitos corações, uma preocupação por aquilo que é direito e justo arrefece a menos que honrarias sejam atribuídas à virtude; enquanto a depravação dos maus não pode ser refreada a não ser pela severidade e pelo conhecimento de que serão punidos. Pois a justiça significa colocar o inocente sob proteção, tratá-lo carinhosamente, resguardá-lo, defendê-lo e salvá-lo. E o julgamento significa tomar posição contra a insolência dos maus, reprimir sua violência e punir seus crimes.

Calvino conseguiu ir direto ao ponto da questão. Ele divide muito bem as funções, as ações e o propósito do poder constituído para governar uma nação. Um fato que se destaca nisto, é o de que o presidente ou governador de uma nação deva ser correto na sua função. Diante de tamanha responsabilidade em que vidas estão em jogo, o caráter de quem governa deve ser impecável. Aqui surge algo importante – aquele que não cumpre com as suas funções não deve ser respeitado como tal. Ele deve ser exonerado do cargo e pagar a pena por violar os princípios do seu ofício.

A teologia protestante é bem clara sobre isto. Ela se opõe contra todo sistema opressor. Tanto o magistrado e o governo na sua amplitude não podem inverter os papeis. Não é o povo que os serve, mas o governo e toda a sua política estão para o serviço do povo. Um estado que não é servo do povo não pode ser legitimado. Este é o problema. Pois quase toda política inverte o seu papel. A pessoa que chega ao poder e perverte o direito do cidadão pode ser considerado além de ditador também um governo diabólico.

Há uma posição cristã bem definida diante do governo tirano. Lutero defendia submissão total. Ele entendia que Deus levanta o governo de acordo com o povo. Na perspectiva de Lutero o cristão deve sofrer todas as injúrias e calamidades de um governo tirano. Calvino rompe com Lutero. Para Calvino o cristão não pode se submeter a um governo que violou o seu propósito. Quando um governante fere todos os princípios éticos e humanos, ele não pode ser levado a sério. Tendo em vista que o governo está para o povo. Quando ele quebra a aliança ele já não pertence mais ao povo. Calvino entende então, que o povo deve lutar pelos seus direitos e convocar toda a população para uma restauração de todo sistema governamental. Não é uma anarquia ou uma revolução sangrenta. Todas as atitudes devem estar respaldadas na lei.

Quando algo errado for transformado em lei em uma democracia, o cristão poderá tomar duas atitudes: 1) desobedecer caso a lei atinja o ministério cristão ou a vida humana (campos de concentração, genocídios, etc.); 2) obedecer, protestando e lutando, pelos canais, para que a lei seja revogada ou alterada, quando estiver relacionada a valores do reino (liberdade, justiça, paz, etc.). O manifesto cristão deve ser presente em momentos em que a liberdade do povo está em perigo. A submissão deve existir, mas ela tem um limite.

Cabe ressaltar que o conceito da democracia nasce num ambiente protestante.Antes de tudo, para compreender a democracia é preciso entender que ela é um estatuto político frágil, extremamente delicado. Não é uma invenção espontânea da natureza humana. Não tem em si mesma qualquer garantia de sobrevivência. Mais profundamente, o verme que a corrói aloja-se no coração do homem. O maior perigo e inimigo da democracia é o próprio homem. Seu egoísmo o impele a abusar de sua liberdade para dispor da liberdade alheia. O remédio para tal perversão não é menos que a liberação espiritual que Deus oferece ao mundo.

A democracia é uma forma de mostrar o quanto Deus é dinâmico em se relacionar com o ser humano. E mostra o quanto o homem está distante deste plano arquitetônico de Deus para uma vida justa, igualitária, bem sucedida e prazerosa.

Na democracia se garante que o indivíduo viva da maneira que bem lhe agradar. Ele é um ser livre para expressar seus pensamentos, suas ações desde que esta não venha a ferir o seu próximo. Ele é um ser que tem a liberdade para transitar em qualquer parte do país. Pode escolher o seu governante sem receio de retaliação. O indivíduo tem a opção para desenvolver o seu próprio ramo de trabalho. Pode comer o que bem entender.

Cada ser humano deve usufruir de direitos iguais, com a liberdade de dedicar-se à atividade criadora. E seu trabalho produtivo deve exercer-se na solidariedade, o que determina que a liberdade seja dominada em favor de uma justa redistribuição (mas não estritamente igualitária obrigatoriamente) das riquezas produtivas, já que estas foram elaboradas a partir de recursos gratuitamente postos por Deus a disposição de todos.

Este conceito foi levantado num período em que o cidadão não tinha direito a nada. No século XVI quando isso começou a ser debatido foi um alvoroço. Num período em que os reis mandavam e desmandavam. Foi a pior arma que estes tiranos enfrentaram – a democracia na perspectiva cristã. Era o fim do sistema opressor. A fé cristã foi à precursora desta alavancada. Os teólogos reformados baseados na sua cosmovisão bíblica entendiam que Deus não era um tirano. Sendo, pois o poder constituído por Deus, não poderia existir uma tirania em relação ao povo. Nesta perspectiva o olhar era voltado para a maneira amorosa e empenhada de Deus em cuidar e sustentar a criação.

A comprovação cabal disso é a autonomia do indivíduo na sua expressão cidadã. Ele tem compromissos com a sociedade. Não é simplesmente o governante que deve se preocupar com a vida de uma sociedade, agora cada membro dessa sociedade participa, opina, dirige e solicita providencias que venham a melhorar a qualidade de vida do povo. Dentro deste sistema participativo que a verdadeira democracia fornece o cidadão é mais do que o governante, ele tem até o direito de criar uma revolução pacífica e derrubar a autoridade que não cumpre o seu papel. Ele pode cobrar ações de senadores e deputados quando estes descumprem as suas prioridades com a nação.

Um sistema como este cria um leque de possibilidades para o cidadão crescer. Ele tem a responsabilidade por seu próprio desenvolvimento espiritual, moral, intelectual e até físico, mas também a cada comunidade encarregada de prover a educação cultural de cada indivíduo. Ela acarreta o florescimento da pessoa, que logo repercute na via política e econômica. Esse é o ponto de partida obrigatório para que desabroche a funcione democrática completa.

A causa final da política é o desfrute de uma vida confortável, profícua e feliz, e do bem-estar comum – que devemos levar, como piedade e honra, uma vida sossegada e pacífica, que ao mesmo tempo em que exercemos a piedade verdadeira em casa, deve ser sustentada a defesa contra o inimigo externo, e que sempre em toda a nação impere a paz. A causa final é também a conservação de uma sociedade humana que objetive uma vida na qual se possa sempre adorar a Deus, sem erro e pacificamente. A matéria da política é: os preceitos para a comunicação daqueles bens, serviços e direitos que estabelecemos, cada um justa e apropriadamente de acordo com suas habilitações, para a harmonia e o benefício comum da vida social. Porque isso parte do princípio de que a política é a arte de unir os homens entre si para estabelecer vida social comum, cultivá-la e conservá-la. Por isso é chamada de simbiótica.

Christopher Marques é mestre em Teologia pela PUC-SP. Professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Tanatologia e Espiritualidade. Autor de diversos livros.

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