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Presidente dos EUA, Donald Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, fala à imprensa ao sair da Casa Branca em Washington, em 3 de outubro de 2019.| Foto: Jim Watson/AFP

Os Estados Unidos da América têm sido bem-sucedidos em expandir sua influência econômica no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Uma estratégia importante dessa expansão foi a defesa do livre comércio. Após o fim da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim, o alcance mundial da influência americana não encontrou rival, mas nas últimas décadas a China tem despontado forte candidato.

A velocidade, em termos históricos, e o dinamismo, em termos econômicos, do crescimento e do desenvolvimento da China impressionam. Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), a China se tornou em 2010 a principal economia exportadora do planeta, ultrapassando o então segundo lugar, a Alemanha. Em 2018, o PIB dos Estados Unidos foi de cerca de US$ 19 trilhões. A China ficou em segundo lugar com US$ 12 tri, um salto impressionante desde 2001, ano da oficialização da entrada do país asiático na OMC, quando o PIB chinês foi de US$ 1,33 tri.

Com uma população aproximadamente quatro vezes maior que a norte-americana, a renda per capita chinesa é hoje menos de um terço da renda per capita americana. Se por um lado devemos reconhecer que a ascensão chinesa encontra algumas limitações, como a distribuição de renda, por outro, é notório que ela pode abalar a ordem das coisas no futuro. A guerra comercial da administração Trump contra a China é um forte sinal disso, já que a estratégia norte-americana de elevação das tarifas de importação de produtos chineses representa uma inflexão na história recente.

Desde o início do século 21, a China passa a exibir grande força na economia mundial. Em 2001, o saldo negativo total na balança de comércio dos Estados Unidos foi de US$ 411,9 bi, tendo sido a China responsável por 20% desse total. Em 2018, o déficit americano atingiu o pico histórico de US$ 874,8 bi – 48% apenas no comércio com a China. Donald Trump é incisivo contra esses déficits comerciais e usa isso como argumento para a guerra comercial.

Trump impõe seu estilo pessoal, tratando política internacional como barganha, mesmo correndo o risco de deflagrar uma recessão econômica global

Embora pareçam impressionantes, os saldos negativos no comércio não dizem tudo: os EUA sustentam déficits comerciais ininterruptos com o mundo desde 1975, último ano em que o país registrou superávit na balança comercial. Mas os americanos têm uma vantagem: o dólar. Os EUA se endividam, mas os investidores do mundo todo buscam nos títulos da dívida pública americana a segurança da previsibilidade, já que o dólar é o lastro da economia mundial. Assim os EUA refinanciam seus déficits correntes no longo prazo.

Trump segue sua guerra comercial de forma estridente e sua postura impetuosa tem trazido imprevisibilidades para a economia, com efeitos para os investimentos, que tendem a se retrair. Se há tanto risco, então porque Trump insiste em sua fúria contra a China? A questão é que, em meio a tudo isso, há a política. Com vistas na reeleição, Trump acena para o eleitorado. Como político, escolheu um inimigo a ser combatido: a China. Pesquisas de opinião realizadas pelos institutos Pew Research Center, RealClearPolitics e pelos canais de mídia NBC/Wall Street Journal ajudam a compreender o caminho seguido por Trump. A maioria dos eleitores americanos demonstra desaprovação geral à política comercial do governo Trump, mas aprova posturas mais enérgicas contra a China.

Há uma retórica populista nessa guerra comercial quando Trump diz proteger as classes média e trabalhadora e que a China é quem pagará a conta. A elevação de tarifas de importação cria um desvio de comércio em que o maior prejudicado é o consumidor americano, que pagará mais caro por produtos importados. O populismo aparece também na voz de Steve Bannon, ex-assessor de Trump, ao afirmar que essa proteção deve ser seguida mesmo em oposição aos interesses das grandes corporações americanas, tratadas genericamente por Bannon como o “boardroom de Wall Street”.

O objetivo autodeclarado é forçar uma mudança de longo prazo da conduta comercial da China com os EUA. O país do leste tem respondido com políticas de estímulo à sua economia e com a depreciação da sua moeda, o reminbi, visando compensar a alta tarifária de produtos chineses nos EUA. A disputa se alastra por diversos setores da economia. Restrições afetam gigantes da tecnologia, como o Google, proibido de cooperar com a Huawei, maior produtora de equipamentos de tecnologia 5G no mundo hoje. O mercado de investimento em empresas (private equity) também tem sido atingido, com agências reguladoras americanas acusando empresas chinesas de toda sorte de fraude.

Nesse fogo cruzado, o mundo inteiro perde: segundo estudo publicado em 4 de setembro de 2019 por Dario Caldara, Matteo Iacoviello e três outros economistas do FED, o banco central americano, o último ano e meio de sucessivas rodadas de elevação de impostos de importação entre os dois países tem o potencial de reduzir em cerca de 1% o PIB real dos países em desenvolvimento, incluindo a China, até o final de 2019.

Trump impõe seu estilo pessoal, tratando política internacional como barganha, mesmo correndo o risco de deflagrar uma recessão econômica global. A aposta é alta e visa colher benefícios para os Estados Unidos. O fato é que a busca segue um caminho de reforço do argumento nacionalista e contra o mundo da economia globalizada. A pergunta que fica é: seria esse um fenômeno passageiro, ou os feitos da guerra comercial tendem a se aprofundar e, com ela, o mundo se aproximar de um futuro tão ameaçador quanto imprevisível?

É cedo para tentar oferecer respostas definitivas a essa pergunta. Mas uma coisa é fato. A partir da década de 1980, a China teve diante de si o panorama global do sistema comercial, econômico e financeiro de concertação liderada por países desenvolvidos do Atlântico Norte. Com a crise financeira de 2008, o mundo enxergou as enormes vulnerabilidades do sistema internacional e hoje a China parece buscar uma via em que ela mesma sirva de modelo para outros países. A iniciativa chinesa do “Cinturão e Rota” para investimento e cooperação internacional dá mostras do desejo de alcance global chinês.

Por paradoxal que seja, a China é hoje um dos países que mais advogam em favor da abertura comercial, como o demonstra o discurso do presidente Xi Jinping na praça da Paz Celestial (Tiananmen) na terça-feira 1.º de outubro, quando da celebração dos 70 anos desde a fundação da República Popular da China. Os Estados Unidos que, pela maior parte do século 20, adotaram essa postura, hoje representam uma das vozes mais enfáticas em defesa de estratégias protecionistas. O tempo dirá se essa é uma tendência que veio para ficar ou se a fúria manifestada por Trump contra China passará com a agenda eleitoral americana de 2020.

Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro, professor de Relações Internacionais da ESPM Porto Alegre.

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