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Militares do Exército durante cerimônia em 2019
Militares do Exército durante cerimônia em 2019.| Foto: Palácio do Planalto

“Os gastos com defesa não se destinam à estimulação da economia, ao crescimento econômico, ou à geração de emprego, ou à política, mas têm de ser justificados com base nas necessidades de defesa da nação.” (Jacques S. Gansler, pesquisador e subsecretário de Aquisições, Tecnologia e Logística do Departamento de Defesa dos EUA entre 1997 e 2001)

No dia 18 de março a Avibras Indústria Aeroespacial entrou pela terceira vez em regime de recuperação judicial e demitiu 420 funcionários, alegando quedas expressivas no faturamento nos últimos dois anos e dívidas da ordem de R$ 640 milhões, segundo o Valor Econômico de 20 de março. Criada em 1961, a empresa apresentou grande instabilidade financeira nos últimos 30 anos. Embora ainda não tenha chegado ao ponto de encerrar suas atividades, a empresa trilha o caminho de várias outras, de relevância para a defesa do país, e que desapareceram do mercado. Entre essas, pode-se apontar a Engesa, que produziu excelentes carros de combate para o Exército Brasileiro, com competitividade no mercado internacional; a Mectron, que era a única empresa brasileira no mercado de mísseis; e a Esca, que teve importante atuação no projeto Sivam e no desenvolvimento dos sistemas de controle de tráfego aéreo.

A Avibras tem uma grande importância na base industrial de defesa brasileira e, como é normal nesse setor, teve sucessos e insucessos. Entre os primeiros, pode-se apontar o sistema Astros 1 (lançador múltiplo de foguetes balísticos), o motor para a revitalização dos mísseis Exocet da Marinha, o motor do míssil ar-ar A-Darter e os foguetes ar-terra Sbat. Ainda não totalmente avaliado e testado está o sistema Astros 2020, desenvolvido para o Exército Brasileiro. Alguns sistemas mais sofisticados encontram-se em fase de desenvolvimento: o míssil antinavio Mansup, para a Marinha; e o míssil de cruzeiro AV-MTC 300, para o Exército. Além de investimentos e compras por parte das Forças Armadas, a empresa recebeu expressivos financiamentos não reembolsáveis da Finep. Pode-se também constatar que a empresa cometeu alguns equívocos mercadológicos, porque investiu em produtos que não tiveram aceitação no mercado, como o drone Falcão.

Uma atitude saudável para empresas que atuam em um mercado exportador altamente incerto, como é o caso de muitas indústrias de defesa brasileiras, é uma adequada preocupação com a sua capitalização em períodos de bonança, que lhes permita enfrentar períodos de baixa demanda. Entretanto, não parece ter sido essa a opção adotada pela Avibras. Existem questionamentos, levantados por pessoas que trabalharam em contratos com a empresa, acompanharam de perto parte de suas atividades e conheciam seus principais executivos, em relação à prioridade dada pelos controladores às pessoas físicas na empresa em detrimento da pessoa jurídica. Uma frase muito ouvida, não só em relação à Avibras, mas também em relação a outras empresas da base industrial de defesa brasileira, é “lucro privado, prejuízo socializado”. Não é o caso, aqui, de se aceitar ou recusar essas avaliações, de considerá-las verdadeiras ou não, justas ou não. Mas o fato inegável é que não existe transparência suficiente no mercado de produtos de defesa como um todo para se chegar a conclusões confiáveis sobre essas questões.

E por que isso seria importante? Por que o tipo de governança das empresas estratégicas de defesa é relevante? Para responder a essa questão – e também à questão-título deste artigo, é fundamental considerar o conceito de empresa estratégica de defesa.

Em primeiro lugar, é preciso entender que, modernamente, pelo menos para países do porte do Brasil, capacidade militar tem dois componentes essenciais: capacidade operacional de combate (ou capacidade militar propriamente dita) e capacidade de logística de defesa. Esta se destina a fornecer os meios para compor as unidades militares de combate e sustentar seu emprego, quando e onde necessário. Não existe capacidade militar efetiva sem esses dois componentes.

Para prover essas duas capacidades, os países desenvolvem e sustentam sistemas (administrados por organizações do Estado) adequados a cada uma delas. As Forças Armadas (FFAA), historicamente, têm como finalidade prover a capacidade operacional de combate. Mas as atividades de logística de defesa são muito diferentes das atividades de combate e exigem recursos humanos, processos, cultura organizacional e, portanto, organizações muito diferentes das FFAA para desenvolvê-las. Por este motivo, praticamente todos os países relevantes em termos de defesa separaram as atividades de operações de combate das de logística de defesa e as atribuíram a organizações distintas.

A parte da logística de defesa voltada para a criação de capacidade militar, que inclui aquisição, P&D e políticas industriais e de CT&I específicas para defesa, é da responsabilidade de uma organização altamente profissionalizada e totalmente independente das FFAA. A parte da logística de defesa voltada para a sustentação do emprego de capacidade militar, conhecida como logística militar ou de operações, tem sido dividida entre as FFAA e essa outra organização que cuida da logística de defesa. Não existe um nome consagrado para designar o sistema que cuida da logística de defesa; um nome adequado seria “base logística de defesa” (BLD).

Parte importante da BLD é a “base industrial de defesa” (BID), onde se situa a Avibras. Essa parte da BLD, que inclui as indústrias de defesa e os institutos de ensino superior e de ciência, tecnologia e inovação, é quem cuida da oferta de produtos e serviços de defesa. A outra parte da BLD é uma organização do Estado que cuida da demanda de produtos de defesa e das políticas industriais e de CT&I para desenvolver e sustentar a parte que cuida da oferta.

É assim em todo o mundo, menos no Brasil. Aqui, o lado da demanda está disperso em três ministérios: Defesa (MD); Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), principalmente via Finep; e Economia (ME), via BNDES. No âmbito do MD a situação é pior. Além de órgãos internos do próprio MD (por exemplo, Seprod e Chefia de Logística e Mobilização), as três Forças Armadas mantêm inúmeros órgãos para cuidar da demanda. No total, são mais de 15 oficiais generais de quatro estrelas, ou civis equivalentes, com autoridade sobre a demanda. No resto do mundo existe apenas um responsável. Assim, o Brasil, na contramão da experiência internacional e das boas práticas de gestão, mantém um sistema claramente redundante (e, consequentemente, menos eficiente) e disfuncional (com baixa eficácia). Apenas essa situação já seria suficiente para explicar por que o Brasil não consegue sustentar suas empresas estratégicas de defesa.

Em artigo recente, publicado na Gazeta do Povo, discuti a necessidade de transformações nas instituições de defesa do Brasil para adequá-las aos novos desafios que o país tem de enfrentar. Mas esse não é o único problema. O Brasil adota um conceito equivocado do que seja uma empresa estratégica de defesa e qual o papel do Estado em relação a ela. Como não existe capacidade militar sem o componente de logística de defesa, não adianta apenas desenvolver e sustentar unidades militares para prover capacidade operacional de combate. É essencial desenvolver e sustentar, concomitantemente, capacidade de logística de defesa, principalmente industrial e de inovação, para que essas unidades militares possam ser construídas para ter efetiva proficiência em combate contra ameaças modernas. Obviamente, essa responsabilidade cabe ao Estado, como sinaliza Jacques Gansler na epígrafe deste texto. Ou seja, o desenvolvimento e sustentação de algumas empresas consideradas imprescindíveis para a capacidade militar do país tem de ser, em última análise, bancado pelo orçamento de defesa. É claro que isso não exclui a possibilidade de outras fontes de recursos (exportações, vendas de produtos e tecnologias de uso dual, por exemplo), mas a responsabilidade final cabe ao Estado, que deve exercer o triplo papel de cliente, regulador e apoiador dessas indústrias.

Como o orçamento de defesa é limitado e existem centenas de empresas que fornecem produtos de defesa, fica claro que poucas empresas poderiam ser bancadas pelo orçamento. Assim, é necessário existir um critério rígido para considerar uma empresa como estratégica de defesa. Um critério lógico seria a essencialidade e a natureza do produto (ser específico e essencial para defesa), como, por exemplo, plataformas (aeronaves, carros de combate e embarcações) e seus sistemas de armas (mísseis, canhões, sensores, comunicações, guerra eletrônica, munições inteligentes etc.), que são normalmente controlados pelos países que os produzem e não existem no livre mercado.

Como em muitos casos é praticamente impossível manter mais de uma empresa para produtos dessa natureza, isso leva inexoravelmente a um mercado que possui características ao mesmo tempo monopolistas (um único fornecedor) e monopsônicas (um único comprador, o Estado). Ou seja, necessariamente o funcionamento dessa relação demanda-oferta tem de ser simbiótico, e isso exige um tipo de governança muito especial. No caso de empresas privadas, como contrapartida à proteção (garantia da sua sustentação) pelo Estado, seus controladores não podem ter total liberdade para decidir o que fazer. As decisões têm de ser compartilhadas em algum grau. Aliás, a primeira versão da Estratégia Nacional de Defesa (END) foi muito clara a esse respeito (destaco o item b):

“A defesa do Brasil requer a reorganização da Base Industrial de Defesa (BID) – formada pelo conjunto integrado de empresas públicas e privadas, e de organizações civis e militares, que realizem ou conduzam pesquisa, projeto, desenvolvimento, industrialização, produção, reparo, conservação, revisão, conversão, modernização ou manutenção de produtos de defesa (Prode) no país – o que deve ser feito de acordo com as seguintes diretrizes: 
(a) Dar prioridade ao desenvolvimento de capacitações tecnológicas independentes. Essa meta condicionará as parcerias com países e empresas estrangeiras, ao desenvolvimento progressivo de pesquisa e de produção no país. 
(b) Subordinar as considerações comerciais aos imperativos estratégicos. Isso importa em organizar o regime legal, regulatório e tributário da Base Industrial de Defesa, para que reflita tal subordinação. 
(c) Evitar que a Base Industrial de Defesa polarize-se entre pesquisa avançada e produção rotineira. Deve-se cuidar para que a pesquisa de vanguarda resulte em produção de vanguarda. 
(d) Usar o desenvolvimento de tecnologias de defesa como foco para o desenvolvimento de capacitações operacionais. Isso implica buscar a modernização permanente das plataformas, seja pela reavaliação à luz da experiência operacional, seja pela incorporação de melhorias provindas do desenvolvimento tecnológico.”

E o que foi feito na prática para implementar essa estratégia, que se pode considerar correta? A resposta é quase nada. A única preocupação foi aprovar uma lei que libera o pagamento de impostos para produtos de defesa. A implementação dessa lei acabou resultando em um critério muito flexível para considerar uma empresa como estratégica. Basicamente, qualquer empresa que seja controlada por brasileiros e forneça produtos de defesa, de qualquer natureza, para as FFAA é considerada estratégica, para que possa gozar de benefícios fiscais. Em resumo, do alfinete ao foguete, tudo é considerado estratégico. Atualmente existem mais de 100 empresas “estratégicas” no Brasil.

Adicionalmente, nenhuma versão da END considerou, ou resultou, em medidas concretas, para definir quais empresas seriam realmente estratégicas para o país, qual seria o ordenamento jurídico adequado ao seu funcionamento, qual seria a capacidade industrial e tecnológica mínima que deveriam possuir (recursos humanos, bens de capital e instalações) e quanto do orçamento deveria ser reservado para sustentá-las.

Com relação ao orçamento, é preciso haver um equilíbrio na sua distribuição, para contemplar tanto a capacidade operacional e combate quanto a de logística de defesa. Em períodos de paz, quando não existem ameaças prementes, a prioridade deveria ser para o desenvolvimento e sustentação de capacidade de logística de defesa realmente estratégica e não o contrário, como o Brasil tem feito há quatro décadas. Portanto, não é nenhuma surpresa que o Brasil não esteja conseguindo sustentar suas empresas realmente estratégicas de defesa.

Em resumo, como cabe ao Estado desenvolver e sustentar capacidade militar, a principal causa da incapacidade do Brasil em desenvolver e sustentar suas empresas estratégicas de defesa pode ser apontada como residindo no próprio Estado, tendo em vista que: mantém instituições obsoletas, redundantes e ineficazes para cuidar da logística de defesa; não define adequadamente quais empresas são realmente estratégicas para o país; não estabelece um ordenamento jurídico adequado para o funcionamento dessas empresas, quer sejam elas privadas ou estatais; não considera no planejamento objetivos relacionados ao desenvolvimento da capacitação industrial e tecnológica mínima para as necessidades da defesa do Brasil, concomitantemente com capacidade operacional; e não prioriza nem aloca orçamentos adequados para desenvolver e sustentar, de forma equilibrada, os componentes operacional de combate e de logística de defesa, da capacidade militar de que o Brasil necessita.

A solução desses problemas encontra grande resistência das corporações militares. Para vencer essa inércia seria necessária uma forte e decisiva atuação do poder político. Entretanto, conforme mostrado em outro artigo recente publicado pela Gazeta do Povo, a classe política não tem se mostrado à altura de suas responsabilidades para enfrentar esse desafio.

Dessa forma, em conclusão, é preciso destacar que a causa raiz do problema é o desinteresse e omissão do poder político, representado pelo Ministro da Defesa, pelo Congresso Nacional (em particular por suas comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional) e, finalmente, pelo presidente da República, assessorado pelo Conselho de Defesa Nacional.

Eduardo Siqueira Brick, Ph.D., é professor titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense, CMG reformado do Corpo de Engenheiros e Técnicos Navais da Marinha do Brasil, membro da Academia Nacional de Engenharia e pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competitividade Industrial (UFFDefesa).

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