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Por que o liberalismo fracassou
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Quando, em meio à pandemia, multidões tomam as ruas em protesto por todo o mundo, torna-se evidente que há algo de podre no reino da Dinamarca. As manifestações das últimas semanas são, é claro, repúdios ao racismo, mas é possível sentir no ar que algo mais está em jogo, como se o mal-estar que toma conta de todos nós – brasileiros e norte-americanos, negros e brancos, conservadores e progressistas – refletisse uma insatisfação profunda com os pressupostos de nossa política.

Essa insatisfação e suas raízes é o tema de um dos livros de filosofia política mais debatidos de 2018, Por que o liberalismo fracassou, de Patrick Deneen, professor da Universidade de Notre Dame. Glorificado por uns e criticado por outros, recebeu de Barack Obama um enigmático elogio: “não concordo com quase nenhuma de suas conclusões”, escreveu o ex-presidente em seu Facebook, “mas ignore-o por sua conta e risco”. Editado recentemente, em maio deste ano, pela Editora Âyiné, o livro não poderia receber sua versão brasileira em um momento mais apropriado. Em meio ao nosso caos de cada dia, suas análises a respeito de nosso individualismo, da gradual perda da coesão de nossas sociedades e da falência moral e intelectual de nossas elites são quase proféticas.

Sua tese central: o liberalismo, fundamento das democracias ocidentais, fracassou, não por ter traído os seus ideais, mas por ter sido bem-sucedido.

Três ideologias marcaram a história contemporânea, afirma Deneen: o fascismo, o comunismo e o liberalismo. A mais antiga dessas ideologias, última delas a resistir, é o liberalismo. Por sua onipresença atual, ele se tornou quase invisível, como as águas de um rio para os peixes ou as paredes da caverna de Platão para seus prisioneiros. Seus princípios, longe de soarem ideológicos, nos parecem a simples expressão do bom senso: um sistema dedicado a assegurar, por meio de um governo limitado e da economia de mercado, a busca individual pela felicidade.

Um belo ideal que, para Deneen, esconde pressupostos perigosos: uma visão individualista do ser humano e uma concepção arriscada do Estado, visto como a única entidade capaz de impedir a guerra de todos contra todos.

Eis porque o liberalismo fracassou tendo sido bem-sucedido: trata-se de uma ideologia, Deneen continua, que não é apenas falsa, mas uma profecia autorrealizável. O liberalismo não é o produto, mas a causa do individualismo. Contra ele, Aristóteles diria: o homem é um animal político, isto é, um ser social que, nascido e criado em uma comunidade, só se realiza em uma vida virtuosa a seu serviço.

Em nome da liberdade de escolha, o liberalismo enfraquece os laços sociais, a ligação com a tradição e os ideais de virtude. Coloca, em seu lugar, uma racionalidade individualista gerida por um Estado centralizador, saudando essa transformação como a libertação da humanidade de um reino de trevas e o início de uma era de tolerância e igualdade que não terá fim. E, tornando-se cada vez mais dominante, torna cada vez mais preponderante a cultura individualista e desenraizada na qual vivemos.

Se aceitamos esse diagnóstico inicial, vemos, no decorrer do livro, caírem, uma a uma, algumas de nossas mais familiares noções políticas. A mais decisiva, a meu ver, é a oposição entre conservadorismo e progressismo que, segundo Deneen, mais que rivais, são irmãos que avançam, ora de um jeito ora de outro, rumo a um ideal comum.

À primeira vista, parecem visões de mundo opostas: enquanto a direita promove a liberdade individual e o livre mercado, a esquerda defende a igualdade social e um Estado forte. Mas o indivíduo moderno é, na verdade, fruto do Estado liberal: é por meio deste que ele se emancipa da comunidade e da tradição. O Estado não apenas garante a sua autonomia, mas também o livre mercado diante do qual faz suas escolhas.

É por isso que, ao lutarem pelo liberalismo econômico, os conservadores acabam por auxiliar a erosão dos valores e tradições que afirmam defender. E os progressistas, com seus discursos sobre destino compartilhado e solidariedade, em sua promoção de uma autonomia pessoal e sexual a serem garantidas pelo Estado, tornam os laços comuns que dizem prezar um ideal mais distante.  Individualismo e poder do Estado avançam lado a lado.

O liberalismo, argumenta Deneen no decorrer do livro, enfraquece culturas locais em nome de uma anticultura global, ao mesmo tempo em que afirma defender o multiculturalismo. Em sua luta contra a tradição, nos rouba o passado, instaurando um tempo fraturado. Ao pensar o homem não como parte, mas como senhor da natureza, prepara a catástrofe ambiental. E, ao erodir nossos laços comunitários, faz com que se dê ao Estado a única possibilidade de instauração de uma ordem social.

Um dos capítulos mais interessantes é o que trata das universidades e do declínio das artes liberais: Deneen, em 2018, explica Weintraub, o ministro da educação que conseguiu ser, ao mesmo tempo, olavete e contra a filosofia.

A educação clássica, escreve Deneen, era uma prática voltada a moldar a personalidade, por meio do cultivo da virtude e da prudência, e transmitir a civilização. Era, por isso, o bastião último da liberdade contra a barbárie e a tirania. Aos poucos, foi substituída por uma formação dedicada a tornar os indivíduos mais capazes de servirem a seus próprios desejos e inquietudes. Não se fala mais em sabedoria e virtude, mas em domínio técnico (as ciências exatas) e crítica da opressão (as ciências humanas). E quanto mais técnicos e contestadores formamos, menos sabemos o que fazer com nossa vida e com o mundo.

É também essencial o capítulo a respeito da nova elite mundial, treinada nesta nova educação, que, desligada de suas comunidades e de seu passado é mais incapaz do que nunca de se colocar no lugar do outro e o servir.

Em nosso mundo, a mobilidade social é cada vez mais difícil. A competição é cada vez mais acirrada e, hoje em dia, global. Em todas as classes, entre pobres e ricos, constata-se uma pervasiva ansiedade. Assim, nossas elites vivem uma versão atualizada da nobre mentira da República de Platão: sendo uma forma corrompida de aristocracia, acreditam ser a resistência à ordem aristocrática. Seu discurso engajado é uma forma inconsciente de ocultar a própria posição, daí a obsessão por justiça social que vemos transbordar nas grandes universidades pelo mundo e que se torna a própria ideologia da classe dominante, usada, por ela, para justificar seus privilégios.

A análise a respeito da crise política é particularmente instigante. Para Deneen, o que temos hoje é o conflito entre democracia e liberalismo: quando os eleitores, por meio do processo eleitoral, rejeitam princípios liberais, as elites buscam limitar esse processo, promovendo uma menor influência popular na administração pública, ao mesmo tempo em que falam em consciência democrática.

Mas, se o liberalismo fracassou, o que colocar em seu lugar?

É em resposta a essa pergunta que Deneen desenvolve uma de suas reflexões mais surpreendentes: não é possível, ele acredita, superar as falhas do liberalismo a partir de uma nova ideologia. Ideologias, por definição, não são capazes de abarcar a complexidade do mundo, nem de nos proporcionar comunidade e virtude.

Não devemos buscar uma revolução, mas cultivar práticas locais de resistência, formar redes de relações (algo próximo à noção de opção beneditina de Rod Dreher) que possam se opor à anticultura liberal. É a partir dessas práticas que uma teoria melhor surgirá.

Essas comunidades, por um tempo, se beneficiarão da abertura das sociedades liberais e poderão se desenvolver, desde que não sejam vistas como uma ameaça. Então, quando o liberalismo finalmente cair, diante do perigo da tirania e desordem, elas não serão mais vistas como uma simples opção, mas como uma necessidade.

O livro, quando foi lançado nos EUA, provocou uma grande quantidade de resenhas. Muitas delas, reconhecendo os problemas diagnosticados no livro, recusavam, no entanto, o repúdio total ao liberalismo. O que colocar em seu lugar? Como assegurar as liberdades asseguradas, na modernidade, por tão grande esforço?

Deneen não se coloca, no decorrer do livro, contra a liberdade. Apenas aponta que a catástrofe política contemporânea vem do repúdio, feito em nome da libertação do indivíduo, da comunidade, da tradição e do respeito à natureza.

Um liberalismo renovado deveria retomar esses três princípios. Contra a onipresença do Estado, o fortalecimento das comunidades locais, onde a verdadeira vida política pode se desenvolver (e não na mente de burocratas afastados dos problemas reais). Contra o eterno presente em que vivemos e o repúdio do passado em nome de um futuro que se torna cada vez mais sombrio, o respeito à tradição e a disposição de aprender com ela (e não de segui-la ingenuamente), especialmente por meio da revitalização de uma educação liberal voltada para o ensino da virtude e da sabedoria. Contra o domínio da técnica, o respeito à realidade natural da qual fazemos parte.

Mas é sobretudo na parte final, a respeito das práticas locais de resistência, que me afasto de Deneen, não por me pôr contra ele, mas porque o radicalizo: tais práticas, ou melhor, para falar com os filósofos tchecos, tal pólis paralela, não é apenas urgente em um tempo futuro. Aristóteles tinha razão: o homem não pode ser feliz a não ser em comunidade (ou então ele é um deus ou um animal selvagem). A pólis paralela não é uma demanda futura, mas uma necessidade presente, realização de um dos anseios profundos de nossa natureza.

Em suma, trata-se de um livro essencial para o debate político contemporâneo, tanto nos EUA quanto no Brasil, ambos vítimas atuais de um liberalismo decadente e desenfreado. Se queremos uma política mais humana, devemos compreender melhor a raiz de nossos problemas, considerando-os em um nível mais profundo, o que é justamente o propósito do livro. Retomando Obama, posso não concordar com todas as suas conclusões. Mas ignore-o por sua conta e risco.

Bernardo Guadalupe é doutor em filosofia, professor universitário e membro do comitê de pesquisa do Instituto Sivis.

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