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Por uma antropologia da máscara
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Alguns meses atrás, bem antes do coronavírus, em uma reunião, eu me surpreendi vendo uma pessoa usando máscara cirúrgica. Depois eu descobri que essa pessoa estava resfriada e estava usando a máscara para proteger os demais de uma contaminação. Na verdade eu me perguntei a mim mesmo em pensamento: “será que ela está doente? O que será que ela tem?”. Hoje me surpreendo, ao relembrar aquele momento no qual a primeira imagem que me veio à cabeça ao deparar-me com uma pessoa portando máscara fora do ambiente hospitalar - uma mulher, diga-se de passagem - foi a imagem de fragilidade, de fraqueza. Alguns dias depois descobri que não se tratava de um gesto de fraqueza, mas sim de um gesto de gentileza, de etiqueta, de respeito e de cuidado para com o próximo.

Hoje, após chegarmos a quase 20 milhões de infectados e a quase 1 milhão de mortos no mundo em apenas seis meses, eu fico me perguntando o porquê de muitas pessoas ainda se recusarem a usar a máscara para se proteger do novo coronavírus, ou usá-la de forma incorreta, em meio à pandemia de um vírus mortal que já matou em apenas 4 meses, quase 100 mil pessoas somente no Brasil. Ao contrário do resfriado comum (0,02%) e da gripe sazonal (0,1%), a mortalidade da Covid-19 é significativamente muito mais alta: no Brasil é estimada em cerca de 1% (considerando também os casos assintomáticos). Como o vírus é altamente contagioso, deixando-o circular livremente, tem potencial para causar um estrago enorme: a projeção da Universidade de Washington é de que o Brasil terá aproximadamente 197 mil mortos em 1.º de novembro deste ano.

Um fato interessante e intrigante e que abre para possibilidade de pesquisas de ordem antropológica é o fato de que a maioria das pessoas que se recusam a usar as máscaras ou as usa de forma incorreta são homens, em grande parte conservadores e que a principal razão é a associação entre a máscara e a fraqueza, como se a máscara lhes impusesse uma imagem de vulnerabilidade. Vale a pena fazer uma investigação de cunho qualitativo com estas pessoas, por meio de entrevistas. A primeira das perguntas seria se as pessoas sabem utilizar as máscaras. Em caso afirmativo, pedir para que tentem colocar as máscaras, para verificar se de fato sabem utilizar ou apenas acham que sabem. Caso não saibam, é interessante perguntar por quê: se não se interessam em aprender, se acham que as máscaras são inúteis, ou ainda se preferem correr o risco de se contaminar por achar que o vírus é mais fraco do que a mídia divulga, ou se não querem simplesmente aparentar uma imagem de vulnerabilidade.

Além destas questões antropológicas, existem questões de ordem política que se faz necessário ressaltar, dado que em países como Brasil e Estados Unidos o uso das máscaras está sendo politizado e polarizado, com efeitos não apenas no combate ao coronavírus, mas na retomada da economia, pois se calcula que as máscaras evitam até 40% das contaminações e vemos também pelo exemplo da Suécia que o que prejudica mesmo a economia é o patógeno, e não as medidas restritivas de mitigação, como o fechamento das escolas ou de algumas atividades nas quais o risco de contaminação é altíssimo, como bares, restaurantes, teatros, cinemas e eventos. O uso universal das máscaras é algo que pode ao mesmo tempo combater a disseminação do coronavírus e ajudar a retomada econômica, na medida em que permite com grande grau de segurança a reabertura da maioria das atividades econômicas. “Usar a máscara” não é “de esquerda” e “não usar” não é “de direita”. Isto não faz o menor sentido, é uma redução brutal do significado original destes termos.

Também existe um discurso que alega o “liberalismo” como a justificativa para o não-uso das máscaras. Esse é o tipo de liberalismo que eu chamo de predatismo. Isso nunca foi liberalismo. Isso é a barbárie, é o saque, é a lei do mais forte, é fazer o que quiser, inclusive por cima do outro, sem nada acima de mim que me limite. Não tem nada a ver com a tradição liberal que vem do século 17 justamente para se opor ao arbítrio do mais forte, em especial do tirano. Liberalismo significa que os indivíduos como cidadãos podem de fato mover-se e viver a sua vida em sociedade desde que respeitem as regras pactuadas no contrato social (as chamadas regras do jogo), discriminadas no ordenamento jurídico, do qual  a Constituição é a pedra angular. Não há nenhuma contradição entre a prescrição do uso universal de máscaras como medida de saúde pública e o liberalismo.

Existe uma outra hermenêutica para interpretar essa questão: é a disputa entre dois direitos. Na Constituição estão garantidos ao mesmo tempo o direito à vida e o direito à liberdade (limitada por esta mesma Constituição e pela ordem legal - a liberdade não é absoluta). Considerando-se uma hierarquia dos direitos, evidentemente o direito à vida é superior ao direito à liberdade, porque é a própria vida a fonte dos direitos e somente ela torna capaz um sujeito de exercê-los. Existe ainda o direito constitucional à saúde, que é constitucionalizado como direito do cidadão e dever do Estado. Não faz jus nem à tradição liberal nem à nossa ordem constitucional, colocar, em nome de uma suposta liberdade tiranicamente entendida, a vida de outras pessoas em risco.

Por fim, cabe aqui mais uma reflexão do porquê dessa associação entre o uso da máscara e a fragilidade, do porquê dessa resistência ao uso como medida de saúde pública em meio a uma pandemia assassina, do porquê dessa falta de cuidado para com a própria vida e de empatia com a vida do outro. Isto não é liberalismo, isso é niilismo, e niilismo “gaio”, como o batizou o filósofo italiano Augusto del Noce: niilismo gaio, ou seja, um niilismo sem inquietação, aparentemente alegre, mas com uma profunda dor, devido à falta de sentido e de significado para a própria vida. Muitas destas pessoas que estão no hoje nos bares, nas praias e em festas e aglomerações sem máscaras, desrespeitando aberta e muitas vezes cinicamente as recomendações das autoridades sanitárias não estão “buscando a felicidade e evitando o sofrimento” como muitas vezes se alega, para justificar, explicar e até legitimar tais atitudes.

Não podemos aqui ser Polyanna e nem discípulos do Dr. Pangloss: estas pessoas não estão buscando a felicidade, estão buscando a anestesia, uma anestesia que as impeça de sentir a profunda dor da falta de sentido e de significado para a própria vida. Nestes casos, a dor é tão grande e tão profunda que preferem mesmo correr o risco de contraírem o vírus e morrer, a fim de conseguir anestesiar a dor. Este fenômeno que estamos observando pode render um belo estudo sobre a antropologia “da máscara”, do homem brasileiro que se recusa a usá-la, bem como buscar descobrir qual é a origem dessa falta de sentido, dessa falta de significado, dessa dor imensa, desse ressentimento, ou seja, deste niilismo gaio que busca se justificar e se legitimar como “liberalismo”.

Dimitri Martins, mestre em Administração pela UFBA e especialista em Gestão Pública pela Enap, é analista de Políticas Sociais no Ministério da Economia.

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