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Imagem ilustrativa| Foto: Pixabay

A decisão de quem deve receber o melhor tratamento disponível para uma determinada doença faz parte do dia a dia de todo gestor de saúde, quer seja na esfera pública ou privada. Desde que suportado cientificamente, demonstradas as evidências e custo-efetividade, com superioridade ao que se aplica, até então, esses tratamentos devem ser estimulados e terem seu acesso facilitado, a qualquer cidadão.

Vivemos uma situação muito peculiar no Brasil. Cerca de 25% da população brasileira, em torno de 45 milhões de pessoas, estão incluídas no Sistema de Saúde Complementar, ou seja, possuem contratos individuais, empresariais ou coletivos com operadoras, seguradoras e planos de saúde que lhe prestam assistência. A Agência Nacional de Saúde (ANS) é quem norteia os princípios, regras, direitos e limitações dos procedimentos e atuações dos diversos atores nesse processo.

Uma das mais importantes ações da ANS é a de determinar quais os procedimentos devem ser cobertos pelas operadoras e planos de saúde que atuam no país, o famoso rol de procedimentos da ANS, tão comentado atualmente, pela transformação de exemplificativo para taxativo, por decisão judicial em andamento. Apesar da sua crucial importância, não vou aprofundar essa questão neste momento.

O que gostaria de refletir aqui e agora está relacionado ao restante da população brasileira, dependente do SUS. Quando digo restante, não posso deixar de mencionar que, muitas vezes, são consideradas verdadeiramente o “resto” dos brasileiros. Esse contingente dependente da nossa saúde pública, dentro do nosso glorioso SUS – e não digo isso ironicamente, pois é um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo, quando considerada sua filosofia, suas premissas e sua importância no dia-a-dia da população – que contabiliza mais de 75% da nossa população, ou seja, nada menos de 180 milhões de pessoas.

A dinâmica de incorporação dos procedimentos para tratamento de pessoas doentes segue vias diferentes, mas com critérios muito semelhantes. Logicamente devendo-se considerar o custo proporcional do volume das pessoas atendidas. A ANS incorpora os procedimentos através do Comitê Permanente de Regulação da Atenção à Saúde (Cosaúde), que vem contemplando a participação de diversos órgãos representativos dos diversos segmentos da sociedade, indicados ou convidados pelo seu coordenador, como profissionais da área acadêmica, técnicos com conhecimentos em áreas específicas, entre outros.

Já o SUS determina essas incorporações através da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), um órgão colegiado de caráter permanente, integrante da estrutura regimental do Ministério da Saúde que agrega em sua composição diversos órgãos como Conselho de Medicina, Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, entre outros. Ambos os sistemas também têm a participação da sociedade civil através dos processos de consultas públicas.

Essa dicotomia organizacional, muitas vezes, leva a diferentes incorporações de tecnologias em saúde entre cidadãos que têm algum tipo de convênio de saúde e os dependentes do SUS, quebrando um princípio básico de harmonia social denominada equidade, ou seja, todos com os mesmos direitos e deveres.

Atualmente, estamos vivendo um exemplo dessa discrepância, já recorrente em diversas situações, e é nosso dever levantar o debate e tentar bloquear a sua já longeva cronificação. Vamos ao exemplo atual: na 109ª Reunião Ordinária da Conitec, realizada nos dias 8 e 9 de junho de 2022, foi recomendada a não incorporação do medicamento Ruxolitinibe, indicado para tratamento de adultos com mielofibrose de alto risco e inelegíveis a transplante de medula óssea. Pois bem, esses pacientes, em pequeno número no Brasil (estimados entre 122 a 434 pacientes por ano) já são contemplados com esse tratamento na saúde suplementar desde 2018.

Lembro que os critérios determinantes dessas incorporações são muito parecidos entre a Cosaúde e a Conitec, evidenciando que todas as tecnologias em saúde oferecidas para a população brasileira necessitam estar registradas e aprovadas pela Anvisa, logicamente em outra instância de avaliação e com finalidades distintas, mas também importantes para considerar sua incorporação pelos sistemas de saúde tanto público quanto privado.

Ressalto que essa situação traduz somente um exemplo de como os pacientes são tratados diferentemente no Brasil, especificamente na área de Hematologia. Outros exemplos têm semelhante importância, como o atraso de décadas do bortezomibe para tratar mieloma múltiplo pelo SUS, rituximabe com uso restrito a certos tipos de linfoma no SUS, lenalidomida, até hoje não disponível no maior sistema público de saúde do mundo.

Mas não é só nesse lado que devemos alentar! Há diversos exemplos de programas de tratamento públicos através do SUS muito organizados, eficientes e que fornecem qualidade, muitas vezes superior aos praticados pelo Sistema Complementar, como exemplos, os programas de Coagulopatias Hereditárias, Transfusão de Sangue, entre outros. E não podemos olvidar que o imatinibe para tratamento de Leucemia Mielóide Crônica foi disponibilizado muito antes no SUS que na saúde suplementar.

Em suma, o que não podemos admitir, e precisamos estar sempre atentos e críticos, é que devemos caminhar para o tratamento igualitário de todas as pessoas que precisam preservar, controlar ou recuperar sua saúde, quer seja usuário de um plano de saúde ou do SUS, pois toda a vida deve ser encarada com igual importância e atenção.

A solução para isso depende de todos nós. Um sistema único de avaliação de pacientes, determinismo técnico igualitário, mais participação dos atores efetivamente inseridos nos sistemas de saúde, sensibilidade social e empresarial, divulgação em massa das decisões, elucidação de pontos e contrapontos. Enfim, precisamos ter uma cultura da equidade na saúde, que é um dos pilares mais importantes da justiça social que tanto almejamos.

José Francisco Comenalli Marques Junior é hematologista, hemoterapeuta e presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular.

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