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Muito já se discorreu acerca da necessidade de se promover um ajuste fiscal para se restabelecer os rumos da economia brasileira. O assunto não carece de análises diversas, das críticas às entusiastas, tecidas por distintos autores, incluindo aqueles por cujas mãos passou o leme do país nos últimos decênios.

Em que pesem divergências marginais concernentes ao grau e ao método, há entre a maioria dos especialistas raro consenso a respeito de sua conveniência. Descontados proselitismos político-ideológicos, trata-se, ao fim e ao cabo, da velha, sábia e pouco deleitosa tarefa de se expandir receitas e/ou contrair despesas.

Pois bem. Do lado dos dispêndios, muito bem faria ao país se o governo patrocinasse um enxugamento real das despesas correntes. A começar pela simbólica estrutura mastodôntica da Esplanada dos Ministérios. Ou pela manutenção de um parlamento comprovadamente intumescido e prostrado.

Não haveria modelo mais esdrúxulo para financiar o Estado do que a atual estrutura tributária brasileira. Primeiro, porque sabidamente injusta; segundo, porque comprovadamente burra

Atenhamo-nos, porém, a questões mais mundanas. Refiro-me à existência inexplicável de mais de 20 mil cargos comissionados dos quais dispõe apenas o poder central. A um dos sistemas previdenciários mais generosos – e irresponsáveis – do planeta, cuja face mais injusta reflete-se em aposentadorias e pensões nababescas de determinados setores do funcionalismo público. A uma estrutura burocrática macrocefálica, inutilmente concentrada na capital federal e que se regozija de sua estabilidade precoce. A regalias e privilégios de que goza a casta togada, completamente descolados do contexto econômico nacional. À manutenção de um sistema universitário estatal cujo financiamento subverte a necessidade precípua de um país de analfabetos. À discutível política de “campeões nacionais” cujos resultados sobre a produtividade e inflação geram questionamentos legítimos. As alternativas são várias e variadas. Há, como se sabe, muita gordura para se queimar.

Mas não, o ajuste de Joaquim nem sequer tangencia os temas nevrálgicos subjacentes à pornográfica concentração de renda e riqueza que há séculos nos macula. Joaquim prefere vociferar contra o seguro-desemprego ultrapassado, o reajuste da base da tabela de Imposto de Renda e o orçamento do Ministério da Educação.

No que toca ao aumento da arrecadação, a inclemência é ainda mais gritante. Não obstante a adoção de determinadas medidas corretivas que merecem apoio, o governo ratifica o manicômio tributário brasileiro em sua faceta mais perversa: seu aberrante viés concentrador de renda.

A subtaxação relativa do andar de cima explicita lógica em que está inserida a questão. A tributação sobre heranças, por exemplo, faz-se não apenas simbólica, como prestaria contribuição efetiva aos fiscos estaduais se implementada com perícia técnica e argúcia política. Somada ao já previsto imposto sobre grandes fortunas (IGF) e à cobrança sobre aeronaves particulares, o montante amealhado não seria desprezível. A despeito da sempre alegada limitação de seu poder arrecadatório – claro instrumento retórico dos que defendem atuação assimétrica da Receita Federal –, estes três exemplos singelos nada mais são do que a práxis do conceito jurídico conhecido como capacidade contributiva.

Não se defende, desse modo, o aumento da carga tributária; antes, a sua redução, desde que aliada a um urgente reequilíbrio: partindo-se de uma base isenta, majorar-se-ia a alíquota do raquítico ITCMD e estipular-se-iam percentuais moderados para o IGF (acima de R$ 5 milhões declarados) e o IPVA aeronáutico (sobre as 20 mil unidades registradas). Como contrapartida, a diminuição (se não a extinção) de uma série de tributos indiretos, reformulando o sistema tributário baseado em uma lógica direta e progressiva.

Conquanto a missão de harmonizar a posse da riqueza extrapole o escopo maior da política tributária – esta, termômetro eloquente para indicar a serviço de quem opera o ente público –, não haveria modelo mais esdrúxulo para financiar o Estado do que a atual estrutura tributária brasileira. Primeiro, porque sabidamente injusta; segundo, porque comprovadamente burra. Qualquer estudante de graduação de Economia poderia apontar que, dada a elevada propensão marginal a consumir da (vasta) população de menor poder aquisitivo, um pequeno incentivo fiscal (via redução de impostos indiretos) atuaria de modo muito mais eficaz quando da necessidade de se estimular a demanda agregada.

Por essas e (muitas) outras é que a referência ao patrimonialismo feita pelo ministro da Fazenda não passa de um deboche. Se se intentasse de fato atenuar a chaga celebrada por Raymundo Faoro, o debate deveria ser travado em outro grau de seriedade. Se há algo de anômalo em toda essa história, senhor ministro, é a maneira obscena com que se tributa a população brasileira.

A severa crise de legitimidade que paira sobre a classe política responde a diferentes causas. Apesar disso, ou justamente em função dela, abre-se mais uma oportunidade para, ainda que timidamente, quitar parte de uma dívida histórica para com os desde sempre espoliados. Ajuste fiscal sobre a classe trabalhadora não requer habilidade técnica do governo, tampouco compromisso político com quem dele necessita. Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões não fariam melhor.

Ajuste fiscal? Seja bem-vindo, a sociedade brasileira precisa de você. Estupro tributário de vulneráveis? Que depois não venha a burguesia branca se lamuriar de viver no país mais violento do planeta.

Ivan Salomão é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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