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O estudo do Ipea comete um equívoco conceitual ao tratar da produtividade do setor público e ao compará-la ao setor privado. São realidades di­­fe­­ren­­tes e, neste campo, incomparáveis

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou um estudo em que mostra que a produtividade média na administração pública brasileira foi, nos últimos 11 anos, 35% superior à verificada no setor privado. O conceito de produtividade, em economia, não é consensual. Há teorias que defendem a concepção de que a produtividade é devida apenas ao fator trabalho, outras que a produtividade depende dos fatores de produção e outras ainda que falam em produtividade total dos fatores. Não é o caso discutir, aqui, as teorias. O Ipea adota a concepção segundo a qual a produtividade é medida pela relação entre o fator trabalho e o conjunto dos demais fatores. Bastante simplificadamente, do ponto de vista privado, isso seria representado pelos salários e pelo faturamento e, do ponto de vista público, seria representado pela folha e pagamentos e pelo orçamento de custeio e capital.

Como o Ipea adota o conceito de produtividade do trabalho, uma avaliação de seu estudo deve partir deste e não de outro conceito. A orientação teórica do estudo sugere que a escolha aproxima-se de uma leitura marxista de produtividade e é a partir dela que se pode avaliar as conclusões do Ipea. Para Marx, a força de trabalho é a única mercadoria capaz de produzir mais valor que seu próprio valor. A força de trabalho contém em si o trabalho vivo em potência, que se transforma em trabalho vivo para si quando este entra em ação, ou seja, trabalho vivo é a "atividade de trabalho". Assim, um equipamento, uma peça ou componente não contém mais trabalho vivo, mas trabalho já realizado (trabalho morto) e, portanto, não podem produzir mais valor do que possuem. Podem apenas transferir para o produto o seu valor diretamente (uma peça ou componente que entra no produto) ou parcialmente (pela depreciação do equipamento).

Para Marx existem dois "tipos" de trabalho: o produtivo, que produz mais valor que o seu próprio valor de troca; o improdutivo, que não produz mais valor. O trabalho improdutivo não é um trabalho inútil ou desnecessário, apenas não produz mais-valia, que é a fonte do lucro do capital. Assim, um médico, por exemplo, que trabalha em um hospital público realiza um trabalho improdutivo. Mas, este mesmo médico, quando trabalha em um hospital privado, realiza um trabalho produtivo, pois ele produz mais-valia para o capital. Não é o tipo de atividade que distingue o trabalho produtivo do improdutivo, mas a relação de trabalho.

O primeiro questionamento ao estudo do Ipea é exatamente este. Como é possível medir a produtividade de um trabalho conceitualmente improdutivo? No setor privado, o valor excedente (mais-valia) é essencial para compor a estrutura dos "custos" (capital constante) e a taxa de lucro. É sobre o valor excedente que o capital acumula, que forma o capital constante, que remunera os juros e que recolhe os tributos. Portanto, quanto maior a taxa de mais-valia, ou seja, quanto maior a produtividade do trabalho, melhores as condições de acumulação pelo capital. Porém, no setor público o orçamento independe do valor de troca do trabalho, independe de um "valor excedente", pois, em primeiro lugar, o limite de gastos com pessoal é determinado em lei e, em segundo lugar, o setor público tem uma função social e não mercantil, ou seja, não realiza valor (não vende seus serviços baseado em um valor de troca).

Um segundo questionamento refere-se ao fato de que nem todo o trabalho realizado no setor privado pode ser considerado produtivo. As entidades sem fins lucrativos e os profissionais liberais que trabalham para si próprios não produzem mais-valia, por exemplo. Mas, encontram-se na contabilidade do setor privado. Além disso, por mais esforço que o Ipea possa fazer, há uma imprecisão na base de dados, pois apenas o mercado formal de trabalho pode ser avaliado no setor privado, enquanto no setor público todas as atividades são formais.

Um terceiro questionamento diz respeito ao fato de que se no setor privado produtivo o valor de troca da força de trabalho (chamado usualmente de salário) é determinado pelo valor equivalente em termos de trabalho socialmente necessário, no setor público a remuneração é definida em planos de carreira que supervalorizam determinadas atividades e sobrevalorizam outras. O conceito de produtividade do trabalho desaparece no setor público. Por exemplo, um técnico do próprio Ipea tem uma remuneração bem superior ao de um docente, mas tanto sua formação como o impacto social e os resultados de seu trabalho têm um alcance menor que o exigido e "realizado" por um professor universitário, doutor, pesquisador em dedicação exclusiva, responsável também pela formação de alunos de graduação e pós-graduação. O que seria "mais produtivo" se ambos vendessem sua força de trabalho no mercado capitalista?

Um quarto questionamento é o de que a medida de produtividade segundo a teoria adotada pressupõe a concepção da composição orgânica do capital (capital constante mais capital variável) e, deste modo, pressupõe o cálculo da taxa de mais-valia em função da relação entre o capital variável e o capital constante. No setor público essas duas formas de capital simplesmente não existem, até porque neste setor não existe capital no sentido estrito.

Um quinto questionamento é o de que se a medida de produtividade é a relação entre o valor do salário e o orçamento, como o orçamento não é determinado pela produção do funcionário, mas pela arrecadação, a menor participação do salário no orçamento total é fruto do aumento de arrecadação e não de aumento de produção.

Em conclusão, o estudo do Ipea comete um equívoco conceitual ao tratar da produtividade do setor público e ao compará-la ao setor privado. São realidades diferentes e, neste campo, incomparáveis. Teria sido mais proveitoso tratar da eficiência, da eficácia e da efetividade do trabalho no setor público, da necessidade de sua existência, de sua importância. O Ipea tem todas as condições para mostrar a quem serve o mito da ineficácia do setor público, porém não escolheu a forma correta de fazê-lo. De mais a mais, introduz, como medida geral de desempenho da atividade pública, um conceito que se presta a "privatizar" a avaliação pública, já tomada por índices importados do mundo empresarial em vários níveis, especialmente nos acadêmicos.

José Henrique de Faria é professor do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento da FAE – Centro Universitário. É professor sênior do PPGE/UFPR

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