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| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Desde que o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, tornou pública sua intenção em apresentar uma proposta legislativa ampliando os espaços de soluções penais negociadas e fazendo referência ao plea bargain americano, o assunto tem despertado grande interesse do público em geral. Num primeiro momento, o tema foi abordado genericamente, com especialistas ora afirmando se tratar de um instrumento inconstitucional e incompatível com a legislação penal e processual penal brasileira, ora enfatizando que a medida representaria um avanço capaz de fazer frente às principais mazelas do sistema de Justiça criminal brasileiro.

Enfim, em 4 de fevereiro, foi apresentado o chamado Projeto de Lei Anticrime, encaminhado ao Congresso Nacional no último dia 19. Dentre as várias modificações legislativas pretendidas, estão previstas as inclusões de dois artigos ao Código de Processo Penal (28-A e 395-A), criando e regulamentando novos instrumentos de justiça penal consensual no Brasil. Pretende-se, aqui, lançar algumas impressões sobre esses dispositivos, especialmente acerca de sua (in)compatibilidade com o sistema penal brasileiro. Assim, espera-se estar contribuindo para o necessário debate sobre tema atual e de significativa relevância, um dos inegáveis méritos do Projeto de Lei Anticrime.

Antes, contudo, necessário tecer algumas explicações acerca da realidade do sistema de justiça criminal brasileiro. Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a capacidade operacional dos órgãos de persecução penal é insuficiente para atender a demanda de infrações penais noticiadas às polícias brasileiras. Este desequilíbrio entre a carga de trabalho e a limitação inerente do Estado para investir no sistema de justiça criminal fez com que se buscassem alternativas à solução de casos penais de menor gravidade, simplificando sua investigação e processo de modo a economizar recursos públicos e permitir uma atuação mais racional e equilibrada.

Assim, inseridos em um contexto de influência e confluência entre os sistemas jurídicos da common law e da civil law, países da Europa Continental e América Latina passaram a ampliar os espaços de justiça penal negocial em suas legislações. Particularmente no continente latino-americano essas mudanças ocorreram no âmbito de um amplo movimento reformista das legislações processuais locais, impulsionado pela implantação de regimes políticos democráticos que tinham como uma de suas metas implementar um sistema processual penal de cariz menos autoritária. Premidos pela combinação do aumento dos índices de criminalidade e com uma legislação penal em franca expansão, a ineficiência do sistema de justiça criminal acima referida passou a ser objeto de especial atenção na região a partir da década de 80 do século 20.

Não é possível afirmar a existência de uma “americanização” dos processos penais romano-germânicos

É neste contexto que o legislador brasileiro estabeleceu, ainda na década de 90, pela Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), formas de solucionar casos penais sem a necessidade de um processo criminal. No caso, sempre que a pena correspondente não superar o patamar de dois anos, é possível que a vítima (artigo 74: composição civil dos danos) e/ou o Ministério Público (artigo 76: transação penal) realizem acordos com o infrator de modo a abreviar a solução do caso penal e evitar o início de um processo criminal. Além disso, em infrações penais cuja pena mínima não supere um ano é possível a suspensão do processo criminal já formalmente instaurado, bastando que, observados os requisitos legais, o Ministério Público, o réu e o defensor pactuem o cumprimento de determinadas condições, por um prazo de dois a quatro anos (artigo 89: suspensão condicional do processo). Em todas as três situações, cumpridas as condições acordadas ou decorrido o prazo da suspensão, a persecução penal é encerrada sem análise de mérito, com a extinção da punibilidade do acusado sendo decretada pelo Poder Judiciário.

Ferramenta similar de justiça penal consensual consta do Projeto de Lei Anticrime. A proposta do artigo 28-A do Código de Processo Penal autoriza o Ministério Público e o investigado a celebrarem um acordo para evitar o processo criminal nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça e cuja pena máxima seja inferior a quatro anos. Nesses casos, há maior probabilidade de que uma futura condenação correspondesse à aplicação de pena privativa de liberdade passível de substituição por uma ou mais pena(s) restritiva(s) de direitos, nos termos do artigo 44 do Código Penal. Interessante ressaltar que a medida é, de fato, praticamente idêntica ao acordo de não persecução penal instituído pelo artigo 18 da Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, com alguns refinamentos que se tornaram tecnicamente possíveis de serem implementados agora que se busca fazê-lo pela pela via legislativa. A diferença mais significativa diz respeito ao fato de a normativa do CNMP autorizar o acordo em infrações penais com pena mínima inferior a quatro anos, enquanto o artigo 28-A permite o acordo em delitos com pena máxima inferior a quatro anos. Há diversos defensores da inconstitucionalidade formal do acordo de não persecução penal em razão de ter sido criado por um ato normativo do CNMP e não por lei em sentido estrito, sendo objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (5.790 e 5.793) no Supremo Tribunal Federal, propostas pela Associação dos Magistrados Brasileiros e Ordem dos Advogados do Brasil, respectivamente.

Tanto o novel acordo de não persecução penal como os instrumentos da Lei 9.099/95 são espécies de justiça penal negocial conhecidas como medidas de “diversão”, expressão técnica que designa soluções alternativas de casos penais em que não há juízo de valor acerca da inocência ou culpa do investigado/réu. Eis, portanto, uma primeira e fundamental distinção entre as medidas de diversão e o plea bargain anglo-saxão, uma vez que neste a negociação se dá justamente a partir do reconhecimento de culpa por parte do investigado, sendo de natureza condenatória a sentença homologatória do acordo.

Leia também: Um pacote anticrime abrangente e robusto (editorial de 6 de fevereiro de 2019)

Leia também: Crime sem processo no Brasil? (artigo de Gustavo Scandelari, publicado em 15 de janeiro de 2019)

É justamente essa a maior novidade de justiça penal negociada do Projeto de Lei Anticrime, ao propor a inclusão do artigo 395-A ao Código de Processo Penal brasileiro prevendo a possibilidade de um acordo entre Ministério Público e defesa, no âmbito de um processo penal já instaurado, dispondo sobre a pena a ser aplicada. Realizada a avença, será apresentado requerimento ao Poder Judiciário, tendo a sentença homologatória do acordo penal natureza jurídica de sentença condenatória (artigo 395-A, § 8.º). Trata-se, assim, de um instrumento com características mais próximas ao sentence bargaining norte-americano, uma das espécies de plea bargain.

Apesar das necessárias e saudáveis discussões que o assunto merece, fato é que a negociação de sentença criminal chega já tardiamente ao Brasil, eis que já implementada em vários outros países de matriz romano-germânica, como Itália, Alemanha, Argentina e França. A forma como essas diferentes formas de acordo de sentença penal têm sido traduzidas para sistemas da civil law já foi objeto de importantes pesquisas, com destaque para o trabalho de Maximo Langer, professor de Direito Comparado e diretor do Programa Transnacional de Justiça Criminal da Universidade de Los Angeles (UCLA). Segundo Langer, embora possuam uma origem comum, as diferenças entre os modelos de negociação de sentença de países da civil law e do plea bargain anglo-saxão são tão profundas que não é possível afirmar a existência de uma “americanização” dos processos penais romano-germânicos. Para ele, a influência americana no processo penal de países da civil law – em especial, do plea bargaining – não fez com que houvesse uma americanização destes, mas, sim, uma fragmentação dentre os próprios sistemas da civil law, os quais outrora apresentavam uma relativa homogeneidade entre si.

As razões pelas quais as versões traduzidas do plea bargain acabam com ele pouco se assemelhando em sistemas de matriz europeia continental estão localizadas nas bases e na história do desenvolvimento do processo penal da common law. John Langbein destaca que foi a cultura da acusação privada inglesa dos séculos 17 e 18 que acabou fazendo com que tanto Inglaterra como Estados Unidos integrassem aos seus processos penais, sem maiores traumas, alternativas consensuais à instrução plena e julgamento de mérito de casos penais.

Determinados itens podem merecer pontual revisão durante a tramitação do projeto anticrime

O transporte da lógica civilista, de absoluta disponibilidade dos interesses em disputa e da ampla liberdade negocial, fez com que o plea bargain surgisse com naturalidade e ocupasse cada vez mais espaço num sistema incapaz de investigar e processar todos os crimes. Atualmente, no sistema de justiça criminal federal americano, cerca de 95% dos casos são resolvidos com acordos. Para além disso, o plea bargain anglo-saxão amolda-se facilmente a uma concepção adversarial de processo penal, eis que sua base negocial aceita sem maiores traumas uma concepção processual na qual prevalece a disponibilidade dos interesses dos contendores, concedendo ao acusador discricionariedade praticamente ilimitada quanto à imputação, pena a ser aplicada etc.

Uma derradeira distinção estruturante e essencial é que, nos Estados Unidos, os órgãos responsáveis pela acusação pública estão organicamente inseridos no âmbito do Poder Executivo, federal ou dos estados. Por conseguinte, a jurisprudência traçou severos limites às possibilidades de controle que o Poder Judiciário pode exercer sobre a ampla discricionariedade do órgão de acusação, tornando o magistrado um mero expectador e chancelador do processo de negociação.

Já no processo penal romano-germânico não há uma tradição histórica recente de acusações privadas, fazendo com que a disponibilidade civilista e a lógica consensual sejam de assimilação mais controversa. É que a primeira fase da persecução penal é marcada pela reconstrução histórica dos fatos conduzida por um órgão do Estado subjetivamente imparcial – no caso do Brasil, o Ministério Público. Este órgão imparcial tem suas decisões sujeitas a controles internos e externos, no caso do processo penal, exercido pelo Poder Judiciário. Para tanto, teoriza-se, todas as investigações solucionadas devem ser submetidas ao devido processo legal em sua plenitude.

É de forma mais lenta, portanto, que a ampliação das alternativas de solução consensual vai sendo adaptada ao processo penal dos países da civil law. Esta acomodação, ou tradução dos mecanismos de justiça penal negociada, é o principal desafio do acordo de sentença penal apresentado pelo Projeto de Lei Anticrime.

Leia também: O “plea bargain”: camundongos x vira-latas (artigo de Eduardo Reale e Rômulo Garzillo, publicado em 7 de fevereiro de 2019)

Leia também: O projeto de lei anticrime e a necessária mudança racional de paradigmas (artigo de Alexandre Knopfholz, publicado em 10 de fevereiro de 2019)

Neste sentido, tomando-se como premissa a possibilidade de uma renúncia parcial, voluntária e expressa à parcela do exercício dos direitos à presunção de inocência, à proteção contra a autoincriminação, ao contraditório e à produção de prova, verifica-se que a proposta encontra-se adaptada ao sistema penal brasileiro, ainda que algumas cautelas devam merecer destaque e determinados itens possam merecer pontual revisão durante a tramitação do projeto. Vejamos:

Em primeiro lugar, a proposta é de alteração legal, ou seja, propõe-se uma regulamentação para a matéria a ser definida pelo legislador, a quem incumbirá delimitar os espaços de consenso e desenhar o procedimento a ser observado.

Em segundo lugar, a proposta estrutura a discricionariedade do Ministério Público, criando regras para o seu exercício e efetivos mecanismos de controle externo, pela defesa técnica (artigo 395-A, caput) e pelo Poder Judiciário (artigo 395-A, § 6.º e 7.º).

Em terceiro lugar, a proposta estabelece que o acordo se dará somente depois de definidos os contornos da imputação e recebida a denúncia (artigo 395-A, caput), evidenciando preocupação com o suporte em outros elementos de convicção, adicionais à mera confissão. Esse dispositivo é relevante por uma série de razões: 1. a verdade do caso passa a ser aquela acordada entre as partes; portanto, o recebimento da denúncia pressupõe juízo de valor pelo órgão jurisdicional acerca da presença de justa causa para a deflagração da ação penal. Em outras palavras: só será possível acordo se o juiz entender existirem provas minimamente suficientes para o início de um processo criminal (artigo 395, III, do CPP); 2. a previsão de que o momento para a celebração do acordo se dá após o recebimento da acusação torna transparente e amplo o acesso pela defesa aos elementos produzidos durante a investigação, face o princípio constitucional da publicidade, equilibrando as posições dos negociadores quanto à cognição sobre as provas existentes; 3. o acordo não diz respeito à imputação, mas somente à pena, ou seja, o Ministério Público não pode dispor acerca dos crimes que deverão ser denunciados, pautando-se pelos critérios legais e, portanto, tendo sua discricionariedade limitada. Poderá, enfim, apenas propor redução da pena até a metade, alterar o regime de cumprimento ou promover a substituição da pena privativa por restritiva de direitos, segundo a gravidade do crime, as circunstâncias do caso e o grau de colaboração do acusado para a rápida solução do processo (artigo 395-A, § 2.º).

Em quarto lugar, devem ser prevenidos consensos coercitivos, o que pode acontecer quando são demasiadamente ampliados os espaços de solução consensual, levando o investigado/acusado a sentir-se pressionado, ou induzido, a confessar. Isso ocorre quando os riscos advindos do processo e julgamento de mérito são excessivamente superiores àquilo que o acusado pode obter pela via do acordo. Como no modelo norte-americano há penas privativas de liberdade excessivamente longas e, por vezes, de prisão perpétua e até mesmo de morte, tem-se observado situações nas quais há um comprometimento do grau de voluntariedade do acordo.

A possibilidade de acordos em crimes relacionados às atividades de organizações criminosas pode ensejar num desestímulo à colaboração premiada

Pela proposta do artigo 395-A, será possível a celebração de acordos de pena em todos os crimes, o que poderia gerar alguma pressão no acusado caso tivéssemos elevadas penas privativas de liberdade no Brasil, como nos Estados Unidos. Não obstante, a ampliação súbita da possibilidade de negociação de pena em todos os casos penais pode, sim, apresentar riscos de acordos involuntários, especialmente quando a lógica e a cultura dos operadores do sistema estão voltadas ao litígio.

Há de se considerar, ainda, que a possibilidade de acordos em crimes relacionados às atividades de organizações criminosas, conforme definição da Lei 12.850/2013, pode ensejar num desestímulo à colaboração premiada, eis que a medida pode ser menos vantajosa ao acusado em relação ao acordo de pena. Poder-se-ia, portanto, esvaziar o instituto da colaboração premiada, ferramenta que tem se mostrado essencial ao enfrentamento da criminalidade organizada no país.

Conclui-se, assim, que a negociação de pena com sentença condenatória apresentada pelo Projeto de Lei Anticrime (artigo 395-A do CPP) não se trata de uma simples transposição do plea bargain americano – algo evidentemente problemático em relação a qualquer transplante de um instrumento jurídico de um sistema para outro – mas de um novo instrumento consensual de justiça penal que, embora possa ainda ser discutido e aperfeiçoado, encontra-se devidamente adaptado ao sistema penal brasileiro.

André Tiago Pasternak Glitz, Master of Laws (LL.M.) pela Columbia Law School da Universidade de Columbia (EUA), é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná atuante junto ao Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp).
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