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O Brasil convive com excessiva naturalidade com alguns conceitos que gerariam guerras civis, cismas religiosos e separação entre famílias e países em outros lugares. Se o cisma que gerou a Igreja Ortodoxa Copta aconteceu por não aceitar a dualidade divina e humana de Cristo (algo bem difícil para os leigos), aqui se convive bem com um conceito horrendo, o “protesto a favor”, de maneira que ultrapassa as raias da histeria coletiva.

Acompanhar os protestos das últimas semanas exige nervos de aço e um conhecimento quase filosófico de contradições que é capaz de enlouquecer qualquer um. Como já enlouqueceu. Enquanto alguns tentam vender os “protestos a favor” do PT, todos devidamente feitos por pessoas com camiseta dos órgãos que geraram o PT (CUT, MST, UNE, Ubes, Apeoesp, CTB e sabe-se lá mais quantos sindicatos devidamente uniformizados), a população fica atônita não só para verificar números e causas, como para acompanhar análises e opiniões as mais desbaratadas sobre as manifestações e os desdobramentos jurídicos das operações policiais. Só entender se Lula é ministro ou futuro prisioneiro já é um paradoxo mais difícil, ou ao menos mais patético, que o do Gato de Schrödiger.

Políticos que sempre se posicionaram a favor do impeachment e batem de frente com o PT foram ovacionados pelo povo

Por fim, há a propaganda, vendida como “notícia” ou “análise”. Tentaram vender a tese, no protesto de domingo passado (13 de março, a maior mobilização popular da história da América Latina), de que figuras da oposição, como Aécio Neves e Geraldo Alckmin, que resolveram fazer parte da manifestação, tinham sido hostilizadas e, portanto, haveria um sentimento “contra a classe política em geral”, como disseram alguns veículos de comunicação.

Aécio e Alckmin foram vaiados, sim. E muito. Ao notá-los ali, o povo passou a vaiá-los tanto que os dois não conseguiram senão atravessar a rua e picar a mula da manifestação, sob palavras impublicáveis. Para um país que pensa com o bolso (Lula, com o mensalão, praticamente deu um golpe totalitário ao usar um poder para comprar o outro e também legislar, mas ninguém o chama de “tirano”, e sim de “ladrão”), o significado é enorme: Aécio, implicado no Banco Rural (o mesmíssimo mensalão de Lula) e em Furnas, ouviu muito mais que “ladrão”, o xingamento típico a políticos: ele ouviu duas palavras em destaque: “oportunista” e “traidor”.

Isso significa que não houve “revolta com a classe política em geral”, e sim com políticos de esquerda, ou ao menos aqueles que não cobraram o impeachment, causa popular já antes da reeleição de Dilma. Por mais que se tente vender a bazófia de ser este um impeachment “de Cunha”, quem quer o impeachment sabe que o presidente da Câmara engavetou mais de 30 pedidos antes de aceitar o de Janaína Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr.

Tanto é assim que políticos que sempre se posicionaram a favor do impeachment e batem de frente com o PT foram ovacionados pelo povo. Ronaldo Caiado e Eduardo Bolsonaro, em São Paulo, mal conseguiam discursar diante de tantos aplausos, sem falar em João Dionisio Amoedo (do Novo) e Jair Bolsonaro, no Rio.

Querem dissolver tudo num substantivo abstrato ou genérico, mas apenas se vê que quem perdeu a história é apenas quem recusa o fim do PT e de tudo o que ele representa.

Flavio Morgenstern, escritor e analista político, é autor de “Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs” e escreve para o site sensoincomum.org.
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