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Katie Tulley sofre de um mal incurável da bexiga e sente dores intensas. “Imagino que seja a mesma coisa que arrancar a pele do braço e derramar ácido em cima. É assim 24 horas por dia, sete dias por semana”, descreve. No ultrassom, o órgão parece uma ferida aberta.

Natural da Lousiana, a ex-terapeuta de crianças autistas de 37 anos consegue suportar a dor com um adesivo de fentanil. O opioide lhe dá algumas horas preciosas fora da cama para ajudar os pais, fazer trabalho voluntário on-line e, muito de vez em quando, sair de casa para fazer alguma coisa que não sejam as consultas médicas. “Não tenho sensação de euforia”, frisa, observando que diminuiu a dosagem para evitar se sentir zonza e incapacitada.

Só que agora, por causa de questões legais cujo objetivo é diminuir os riscos de overdose, seus médicos pensam em parar com a medicação, embora ela nunca tenha abusado. Por isso, quando descobriu um volume suspeito na barriga, se viu na esperança de que fosse câncer. “Eu não deveria torcer por uma coisa dessas, imagine, mas, a essa altura, é a única opção de tratar minha dor”, explica.

Cerca de 18 milhões de pessoas dependem dos opioides para administrar dores crônicas intratáveis, nem sempre associadas a doenças terminais. Em 2016, com o objetivo de diminuir o mau uso da substância, o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) instaurou diretrizes estabelecendo as dosagens máximas seguras e recomendando insistentemente aos médicos que evitassem receitar remédios para dores crônicas a menos que a morte fosse iminente. As novas regras deveriam ser voluntárias e aplicadas somente para os pacientes que procurassem os clínicos gerais; em vez disso, porém, são consideradas obrigatórias por todos os profissionais.

Cerca de 18 milhões de pessoas dependem dos opioides para administrar dores crônicas intratáveis

E o resultado é que milhares viram suas doses serem reduzidas ou eliminadas. Acontece que essa tentativa de salvar as pessoas do vício está deixando muitos pacientes em constante estado de dor – arruinando, ou muitas vezes interrompendo, vidas.

Um estudo da Veterans Health Administration revelou um número alarmante de suicídios após a interrupção das terapias com opioides; a Human Rights Watch divulgou há pouco tempo um relatório que detalha as dificuldades de pacientes em conseguir alívio e tratamento para a dor crônica nos Estados Unidos, depois de que o governo passou a restringir as doses medicamentosas.

A prescrição que não obedecer à diretriz do CDC pode levar a uma investigação por parte do conselho médico e até do DEA, órgão federal responsável pelo controle de narcóticos; com isso, muitos médicos ou desistem de receitar as substâncias ou diminuem os volumes para que se ajustem às recomendações. Segundo pesquisa realizada em 2017 pelo Boston Globe, quase 70% dos internistas e/ou médicos familiares tinham reduzido a recomendação nos dois anos anteriores, e quase 10% suspenderam os remédios de vez.

O estado do Oregon está avaliando uma proposta para exigir que todos os pacientes do Medicaid com determinados tipos de dor crônica parem com os opioides; acontece que nem todos podem ficar sem a medicação e há os que, seja por causa do metabolismo, diferenças genéticas ou tolerância pelo longo tempo de uso, sempre precisarão de doses mais altas que as recomendadas pelo CDC.

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Um bom exemplo é o de Jay Lawrence, um ex-motorista de caminhão. Quando seu médico se recusou a continuar com os remédios, no início de 2017 – embora o paciente sofresse de dores fortíssimas devido a uma lesão na coluna e não fosse viciado –, ele disse à mulher que não aguentava mais. E, no parque onde recentemente o casal tinha renovado os votos, ele atirou no próprio peito enquanto ela lhe segurava a outra mão.

Ao promover a redução das prescrições, as agências reguladoras, seguradoras, autoridades da lei e legisladores ignoram os verdadeiros perigos do sofrimento prolongado dos pacientes, incluindo suicídio e maiores riscos de enfartes e AVCs. E com o governo Trump prometendo reduzir a produção dos opioides em até 10%, o número de doentes em risco é ainda maior.

Sem dúvida, a substância vem sendo receitada em excesso. Uma resenha feita pela Johns Hopkins de seis estudos concluiu que dois terços dos pacientes revelaram não ter tomado os comprimidos. E, para muitos, os analgésicos nem fazem efeito ou fazem mais mal que bem. Entretanto, embora seu uso tenha caído quase 30% desde a maior alta até agora, em 2011 – e as mortes associadas com sua prescrição tenham se estabilizado, no geral –, os óbitos por overdose vêm batendo recordes, principalmente devido à produção clandestina da substância.

De fato, conforme as prescrições caíram, as mortes ligadas aos opioides ilegais dispararam. De 2010 a 2016, a mortalidade por overdose de heroína aumentou quase 500%, e a associada com o fentanil clandestino, 600%, só entre 2013 e 2016.

Há um sem-fim de evidências de que o sofrimento permanente leva os pacientes a alimentar pensamentos suicidas

Os membros do CDC admitem não ter controle sobre o número de suicídios de pacientes que perderam o acesso ao alívio para a dor, por isso não se sabe exatamente quantas pessoas já tiraram a própria vida por não conseguirem conviver com a agonia constante.

O que se sabe é que há um sem-fim de evidências de que o sofrimento permanente leva os pacientes a alimentar pensamentos suicidas. Karen King, por exemplo, revela que foi internada quatro vezes por causa dessa ideia fixa e de várias tentativas. Sua dor crônica é resultado de uma fratura no pescoço. E, quando seu médico suspendeu a medicação, ela teve de fechar a loja de colchas de retalhos que tinha em Massachusetts, pois não conseguia mais ficar de pé ou carregar as peças de tecidos. “Foi o que acabou comigo”, lamenta.

Jeff Geurin é outro exemplo. Linguista criptológico da Força Aérea, ele se feriu em um acidente de paraquedas. Depois de ser forçado a dar baixa, em 2008, voltou a estudar e se formou técnico de enfermagem. No ano passado, quando seu médico suspendeu a medicação, passou a sentir dores tão intensas nas costas que chegou a planejar o suicídio – até descobrir um novo especialista.

Na pressa de reduzir o mau uso dos opioides, é fácil esquecer que milhões de pessoas tomam essas medicações há anos, de maneira segura. Os dados mostram que menos de 8% dos pacientes de dores crônicas se tornam viciados, de acordo com um estudo que teve como um dos autores o diretor do Instituto Nacional de Abuso de Drogas. Além disso, na imensa maioria dos casos, o vício não começa com a receita do médico; cerca de 80% das pessoas que começaram usar a medicação de forma excessiva/errada obtiveram-na por intermédio de familiares, amigos e conhecidos, e não por meio de um tratamento legítimo para a dor.

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É fato que o uso prolongado e em altas doses da substância está associado a um risco maior de overdose, mas aqueles que sugerem simplesmente eliminá-la o fazem sem reconhecer que a redução ou a suspensão da prescrição pode ser extremamente perigosa.

Um estudo de 2017 sobre 500 veteranos que foram forçados a reduzir as doses concluiu que 9% se tornaram suicidas, e 2% realizaram seu intento. Outra pesquisa recentemente exibida em uma conferência sobre serviços médicos mostrou que 30% dos que tiveram de suspender por completo a medicação morreram em seis meses, ainda que os dados não revelem os motivos.

Stefan Kertesz, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Alabama, em Birmingham, veio a público dizer que não há um volume satisfatório de provas que mostre que a abstinência forçada é eficaz, e que ela inclusive está associada a sérios danos em alguns casos.

Mesmo os pacientes terminais de câncer também podem ser afetados. Barbara McAneny, presidente da Associação Médica Americana, descobriu recentemente um caso entre seus próprios pacientes: um homem com câncer de próstata e metástase nos ossos que tentou se matar ao ser impedido de comprar os analgésicos fora da dosagem permitida.

Os dados mostram que menos de 8% dos pacientes de dores crônicas se tornam viciados

Depois de anos de passividade, os médicos finalmente estão começando a se manifestar. McAneny citou sua experiência para apoiar uma resolução, que acabou sendo aprovada pelo conselho médico, de advertência contra a aplicação errônea das diretrizes. O grupo enfatiza que a dosagem, única e exclusivamente, não é razão para as seguradoras e farmácias bloquearem o acesso – e que os médicos com motivos válidos para não as respeitar não devem ser investigados ou processados.

Uma iniciativa concomitante de um grupo de mais de 300 profissionais, tendo Kertesz como um dos líderes e aprovado por três antigos “czares das drogas” dos EUA, pede que o CDC faça um “esclarecimento definitivo”, afirmando que as diretrizes não devem exigir que quem sofre de dores crônicas e seja dependente tenha as dosagens reduzidas. Outro grupo de especialistas, incluindo alguns defensores ferrenhos das diretivas, publicou recentemente um artigo classificando a redução involuntária de “questão humanitária em larga escala”, exigindo que ela seja proibida ou pelo menos minimizada.

Paradoxalmente, há um consenso cada vez maior entre os médicos de que os pacientes adictos não podem ser forçados a parar de tomar os remédios. O tratamento mais seguro para o vício em opioides é a manutenção da medicação adequada: metadona e buprenorfina são as únicas opções comprovadas na redução dos índices de morte em 50% ou mais.

“No momento, temos menos consideração pelas pessoas que sofrem com as dores e com o uso crônico de opioides do que por aqueles que estão usando heroína na rua”, atesta Kertesz. Os dois grupos merecem compaixão, incluindo um amparo legal para quem precisa de dosagens altas e seus médicos. Tentar reduzir os riscos de overdose aumentando as chances de suicídio, além de cruel, é insensato.

Maia Szalavitz é autora de “Unbroken Brain: A Revolutionary New Way of Understanding Addiction”.
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