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Costumo fazer uma pergunta simples a meus alunos e alunas em sala de aula: se, em uma esquina qualquer, alguém estiver oferecendo um panfleto ou um encarte de supermercado, você recusa ou aceita (às vezes, pega apenas por educação, já procurando a próxima lixeira a fim de se livrar do papel)? Mas e se te oferecerem um exemplar de jornal de grande circulação, completo, bem dobrado, cedinho da manhã? Neste último caso, as respostas da turma tendem a indicar que a oferta será aceita – mesmo que seja para repassar o material a alguém mais interessado na leitura.

É justamente o tipo de relacionamento que cada um de nós mantém com as fontes de informação que precisa ser ponderado quando tratamos das chamadas fake news – ou, simplesmente, notícias falsas. Se sabemos que cada tipo de conteúdo midiático estabelece um vínculo próprio com a audiência, o que explica nossa preocupação crescente com a criação e a distribuição de meias verdades ou de pura mentira?

Vejamos, em primeiro lugar, que o jornalismo comercial reivindica, desde o final do século XIX, seu papel de autoridade apta a fiscalizar agentes públicos e instituições do Estado. Em um cenário à época marcado pela hegemonia da chamada “imprensa de opinião” ou “imprensa partidária”, a nascente indústria do jornalismo propôs ao público uma espécie de contrato (ainda que informal) pelo qual se comprometeria com os princípios da objetividade e da imparcialidade. A intenção dos jornais, naquele momento, era convencer os leitores de que aquele material impresso teria um diferencial em relação aos panfletos. Isto é, o jornalismo desejava construir uma imagem de si como instituição capaz de confeccionar conteúdos de boa qualidade, submetidos a um controle que implica rotinas e técnicas de produção próprias. No horizonte, estava a ideia de agregar credibilidade ao relato dos fatos.

Foi assim que o jornalismo se consolidou, ao longo do século XX, enquanto campo social. A maior projeção de empresas, profissionais, conhecimentos teóricos, treinamentos e técnicas próprias conferiu a tal atividade uma espécie de “autorização” para que pudesse administrar uma parte privilegiada da esfera de visibilidade pública. Foi assim que aquilo hoje chamado de “imprensa” passou a se configurar enquanto arena informativa, espaço para apresentação de opiniões divergentes (por meio de artigos de opinião) e, claro, na condição de jogador autorizado a se posicionar sobre temas de interesse público (no caso, em textos editoriais).

As assessorias de comunicação ou os institutos responsáveis pelas sondagens de opinião também se esforçam para construir uma relação própria com os cidadãos

É verdade que, além do jornalismo, outros agentes passam a disputar o poder de influenciar a opinião pública. As assessorias de comunicação ou os institutos responsáveis pelas sondagens de opinião também se esforçam para construir uma relação própria com os cidadãos, seja realçando determinados aspectos ligados à imagem pública de uma pessoa, seja vendendo resultados de levantamentos estatísticos supostamente capazes de captar os sentimentos do público.

Nesse sentido, é possível dizer que as notícias falsas apenas representam um dos vários produtos patrocinados por novos agentes que passaram a disputar a conquista de corações e mentes no conturbado cenário informacional do século XXI. Em paralelo a esses novos grupos estão as redes sociais digitais – que, com seus algoritmos, gerenciam o que será exibido com maior frequência na linha do tempo que nós apenas temos a impressão de controlar.

Assim, o fenômeno das fake news (aqui entendido como a elaboração e a divulgação de informações falsas, produzidas com o objetivo deliberado de enganar o leitor) mais parecem apresentar um tipo de concorrência ao jornalismo. Isso se dá, basicamente, por dois motivos: em primeiro lugar, porque as notícias falsas também já se constituem como um negócio, “desviando” parte da audiência e dos anunciantes que usualmente patrocinam os periódicos tradicionais; depois, porque as fake news impõem aos relatos jornalísticos desafios como, por exemplo, a necessidade de uma postura mais firme diante da apuração.

Mas por qual motivo o debate público atual tem se alvoroçado ao tratar das notícias falsas? Ora, sabe-se que elas não são fenômeno novo. Futricas, fofocas ou até materiais da imprensa publicados sob pseudônimos integram o panorama comunicacional há séculos. Nas últimas décadas, aliás, a divulgação de informações falsas (ou apenas parcialmente verdadeiras) e a edição maldosa de materiais audiovisuais ganharam projeção com o rádio e com a TV.

Leia também: Fake news: espaço para o ódio e o controle da política (artigo de Eduardo Faria Silva, publicado em 20 de fevereiro de 2018)

Nossas convicções: Liberdade de expressão

Mas, é importante destacar, há duas propriedades das fake news que as diferenciam da boataria tradicional: nível de repercussão e grau de verossimilhança. O primeiro ponto se relaciona diretamente à facilidade em publicar conteúdos nas redes sociais digitais. É cômodo clicar. É cômodo repercutir se tal ato não traz consequências imediatas ao usuário. Quando conteúdos maliciosos chegam até nós graças ao compartilhamento feito por pessoas em quem confiamos, então, o estrago está feito. É por isso que se mostra particularmente perigosa a difusão de informações falsas por parte de autoridades políticas – aliás, são cada vez mais frequentes os casos de parlamentares que divulgam fotos como se fossem originalmente ligadas a um evento político que lhes é de interesse.

Muitos desses políticos – quando forçados a prestar contas – dizem que não agiram de má fé, jogam a culpa na assessoria ou alegam que receberam a informação de um eleitor (curiosamente, por trás de tal justificativa irresponsável, a autoridade ainda tenta associar a si a pecha de democrata, alguém que dá voz “ao povo”). O fato se torna ainda mais grave quando é cogitada a possibilidade de que a difusão de fake news ocorra, em alguns casos, de forma deliberada – o usuário sabe que o conteúdo é mentiroso, mas insiste em divulgar simplesmente porque reforça uma visão de mundo que lhe é favorável.

A segunda propriedade que diferencia as fake news da boataria tradicional tem a ver com a capacidade de tais conteúdos de se adaptarem à gramática jornalística. A adoção das mesmas lógicas da redação das notícias (com uso de aspas, omissão da figura do narrador, dentre outras estratégias) aumenta a possibilidade de convencer o leitor de que o material tem autenticidade.

Diante de tal cenário, uma questão relevante é: em que medida as notícias falsas atrapalham o bom funcionamento das democracias? De imediato, dois malefícios se mostram mais evidentes. O primeiro deles é concernente ao fato de que a comunicação de massa se mostra um elemento cada vez mais fundamental na disputa pela construção de imagens públicas em períodos eleitorais. Provas disso são as contratações de marqueteiros prestigiados; o alto valor no orçamento da produção midiática dos candidatos; o estabelecimento de coligações partidárias tendo em vista o tempo de TV e rádio agregado por cada bancada; os recentes escândalos de corrupção que envolvem agências de publicidade e propaganda. Assim, na disputa para influenciar a opinião pública, não basta apenas investir na formulação de programas de governo. É preciso ressaltar qualidades pessoais positivas de si e vincular adjetivos negativos ao adversário.

No acirramento da luta pelo voto, as lideranças políticas, muitas vezes, acabam não resistindo à tentação e apelam para as campanhas negativas. Se, durante alguns anos, a comunicação digital foi utilizada como o meio que mais servia para complementar os ataques veiculados no rádio e na TV, o panorama atual se encontra distinto. As técnicas de monitoramento dos concorrentes (qualquer erro na publicação de um post ou o vazamento de um vídeo com uma frase infeliz) se unem à terceirização dos ataques – ou seja, em vez de criticar diretamente os opositores, as assessorias de campanhas elaboram material a ser distribuído indiretamente, por meio de simpatizantes, eximindo-se da culpa.

A audiência deve cultivar mecanismos de defesa para lidar com os problemas que a comunicação digital traz

Nesse contexto, as notícias falsas integram um conjunto de estratégias de “desconstrução” dos adversários. Ao perceber que os concorrentes estão à frente na corrida eleitoral (ou ao avaliar que isso se deve à utilização de notícias falsas), as assessorias (com conhecimento ou não dos candidatos) passam a lançar mão de artifícios não republicanos. Daí para formas de manipulação paralelas (compra de curtidas ou utilização de robôs) é um curto passo. Como resultado, existe a chance de termos uma competição baseada não em ideias, mas em avaliações fundamentadas, na maioria das vezes, em fragmentos enganados (e enganosos) sobre picuinhas da vida privada de um candidato, por exemplo.

O segundo malefício se refere não ao momento de captura do voto, mas ao próprio processo de produção das decisões políticas que tem lugar nos palácios e casas legislativas. O risco para as democracias de que agentes privados passem a utilizar recursos como as notícias falsas a fim de pressionar parlamentares pode levar a uma situação na qual qualquer debate se mostra contaminado e longe da razão.

Dada a gravidade do assunto, as reações às notícias falsas começam a ganhar mais força. Dentre elas, além das normas jurídicas que passam a prever punições ou a criar mecanismos que facilitem retirar “do ar” conteúdos inverídicos, está a emergência do chamado “jornalismo de checagem de fatos”. Ainda que o nome não seja dos mais apropriados – afinal, todo bom jornalismo checa fatos –, as entidades dedicadas a essa atividade têm se projetado. Uma de suas marcas não é necessariamente o confronto com agentes e instituições públicas, mas o próprio uso das tecnologias de comunicação digital a fim de aperfeiçoar os mecanismos de controle, fiscalização e prestação de contas. Além disso, tais iniciativas ajudam a orientar a audiência a não acreditar tão facilmente em frases de efeito.

Aliás, sublinhe-se que, dentre as providências para combater as fake news, está a necessidade de investir em alternativas que eduquem os cidadãos a suspeitarem de determinadas informações. Ou seja, a audiência deve cultivar mecanismos de defesa para lidar com os problemas que a comunicação digital traz – ainda que, a cada avanço na detecção e punição a perfis que espalham informações inverídicas, novas estratégias para ludibriar o leitor sejam criadas. Também seria útil se as autoridades políticas parassem de confundir o público quando acusam de fake news qualquer reportagem que vá de encontro a seus próprios interesses políticos e ideológicos.

Jamil Marques
é professor do departamento de Ciência Política da UFPR.
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