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Imagem ilustrativa.| Foto: Tama66/Pixabay

A notícia de que o Mestre estava novamente na praça principal correu as ruas nas primeiras horas da manhã. Logo, uma pequena multidão se reuniu a sua volta; eram seguidores, curiosos, céticos, moribundos, todos nutridos pela expectativa inquietante de ouvir suas palavras. Na semana anterior, o caldo quase entornou enquanto ele ensinava em uma festa na cidade. Foi ameaça de prisão para cá, empurra-empurra para lá e xingamentos pipocando entre os moralistas mais radicais. Depois do episódio, passaram-se alguns dias sem que se tivesse notícias suas. Por isso, tão logo o sol despontou, a informação de seu retorno espalhou-se como pólen.

O Mestre estava sentado tranquilamente em uma cadeira de madeira colocada sobre o chão de terra batida, de modo que a reunião chamava a atenção dos transeuntes, muitos dos quais também paravam para ouvi-lo, formando uma espécie de semicírculo ao seu redor. Horas pareciam minutos, tamanho era o envolvimento das ideias apresentadas pelo incansável orador.

Foi então que a turma dos moralistas surgiu subindo a rua. Narizes empinados e queixos apontando para a frente, como se fossem armas afiadas. Os olhos semicerrados pareciam inebriados pelo sangue de alguma justiça. Eles empurravam de lá para cá um sujeitinho magro e surrado, com cara de rato. Usava óculos de grau forte e tinha o cabelo lambido pelo suor que lhe descia a testa e o pé da nuca. Estava aterrorizado, coitado. Já a tropa tinha passos confiantes que rompiam o chão em uma marcha organizada. Empunhavam bandeiras, vestiam camisetas da militância e declamavam palavras de ordem. Alguns ostentavam nas mãos pedras e porretes.

A uns 200 metros de onde se formara o semicírculo, a tropa moralista parou, bloqueando o trânsito. Era a hora de chamar atenção. Um dos líderes pôs-se no comando, escalando o gradil da calçada de pedestres. Ele gritava algo e os outros repetiam... Era tudo ensaiadinho, feito um coral. As pessoas que estavam mais afastadas do centro de onde fluíam as palavras do Mestre notaram o tumulto e se viraram para ver. Logo, um burburinho foi tomando conta dos ouvintes.

Percebendo que o barulho era insuficiente para fazer cessar a reunião, a tropa moralista continuou a avançar. Dessa vez, cinco iam à frente, puxando e empurrando o rapaz magro, que se movia mais por inércia que por iniciativa. Conforme se aproximaram, a pequena multidão abriu caminho para que o grupo passasse em direção ao centro. Então, os cinco moralistas posicionaram o rapaz diante do Mestre, que continuou tranquilamente sentado.

“Mestre, este homem disseminou ódio e intolerância. Temos prints e vídeos. O flagrante nos autoriza a cancelá-lo do convívio social!”

Mas o Mestre, permanecendo em silêncio, inclinou-se e começou a escrever no chão de terra batida com o seu dedo.

O grupo percebeu o peso instalado no ar. Agora, todo burburinho havia se esvaído, com exceção de alguns gritos isolados lançados pelos moralistas mais exaltados. Se as horas de palavras do Mestre eram como poucos minutos, seu silêncio durava a eternidade. Orgulhoso de si, o líder do movimento retomou:

“Mestre, não sei se fui claro, mas, veja estes prints... Postagens acintosas; ofensas escancaradas! O Senhor bem conhece a Lei... Pois, então, diga-nos: devemos cancelá-lo?”

O Mestre continuava a escrever na terra. Seu semblante era o mesmo, o que deixou o líder moralista irritado. Sabia que a ausência de resposta ressoava mais alto do que qualquer grito de guerra que a trupe pudesse entoar. Receoso de perder o controle que supunha ter sobre a situação, ajoelhou-se de frente ao Mestre, inclinando seu nariz pontudo até quase tocá-lo.

“Mestre, o que fazer com este homem. Qual é o seu parecer?”

Nesse instante o Mestre parou de escrever. Tirou dos bolsos um lenço e cuidadosamente limpou o remanescente de terra de seus dedos. Levantou-se com calma, olhos ainda baixos. Percebeu que o líder moralista havia pisoteado parte da frase que esculpira no solo. Seu corpo já estava ereto quando finalmente ergueu a cabeça, olhando à frente. Rotacionou a visão por todo o semicírculo abarrotado de gente. Para ele, era nítido distinguir os moralistas: não olhava para as camisas ou bandeiras; olhava para os corações e via o ódio armazenado, pronto a ser despejado em qualquer elemento expiatório. Aquilo não era mero cumprimento da Lei; era expurgo público, encenação de virtude, vaidade disfarçada de altruísmo. Era o definhamento dos valores caminhando para sua completa subversão.

Tomando fôlego, abriu os lábios devagar e deixou que as palavras fluíssem naturalmente, em alto som e bom ânimo:

“Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a cancelar este homem.”

Todos viram as cabeças baixando, mas só o Mestre foi capaz de sondar os corações. Dos moralistas percebeu o olhar para dentro de si, relutante, irresoluto. Uma introspecção esquisita, porque inédita. Captou o cavoucar frenético em busca de algo próximo de sentimentos, como se já há muito tempo estivessem enterrados sob a poeira da militância. Esta falta de correspondência empática levou-os a outra direção, a da razão. Esforçavam-se para encontrar os argumentos plausíveis para justificar a causa, mas também aqui não tiveram sucesso. Então, no frenesi estranho dessa epopeia interior, uma luz brilhou no horizonte cordial. Troféus, medalhas, todo tipo de honraria... Enfim, o pretexto que buscavam para fazer o que faziam: estimavam-se melhores que os outros. Mais santos, mais inteligentes, mais puros, mais vanguardistas, mais dignos, mais altruístas. Sentiam-se mestres de si e curadores da humanidade. Eles realmente acreditavam não ter pecado.

De repente, ouviu-se uma voz do fundo da multidão:

“Sai da frente quem não quiser levar pedrada!”

Uma espécie de highlander brotou diante do Mestre. Cabelos bagunçados, rosto suado, olhos vermelhos e porrete na mão. Foi o primeiro golpe no pobre magricelo. O líder moralista encarregou-se do segundo: lançou uma pedra pontiaguda que atingiu a têmpora do rapaz. Então começaram a chover pedras, pedaços de pau, terra e até partes do gradil metálico que separava a rua da calçada. Foi um banho de sangue.

Quando o corpo magrelo e desfigurado do coitado jazia no chão, já sem vida, um nerdzinho militante saiu do meio da multidão e dirigiu-se ao centro. Clicava rapidamente a tela de um tablet.

“Prontinho. O infeliz está cancelado”.

Todos ao redor se entreolhavam assustados. Aos que estavam na primeira fileira, sobraram até respingos de sangue. O silêncio permanecia; nem mesmo a trupe militante teve estômago para se manifestar.

O líder moralista era o único de cabeça altiva. Então, tomou do chão uma pedra afiada e ensanguentada, e apontou-a em direção ao Mestre:

“Fica esperto, Mestre... O próximo pode ser o senhor”.

Virou-se com pose de popstar e saiu por onde entrou, deixando para trás um corpo, um povo e o Mestre. “Venham. Vamos destruir umas vitrines!!!”

Leonardo Dantas Costa é advogado e autor de “Delação Premiada” e “Reflexões em tempo de pandemia”.

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