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Desde o primeiro ano da faculdade, os juristas aprendem a ser conservadores. O direito existe para conversar um estado de coisas que assegure a estabilidade das instituições. Porém, o que ocorre quando se constata que esse estado de coisas agride aquilo que a segurança jurídica tem de mais caro, que são os direitos fundamentais? Como o direito pode conviver com situações fáticas, sob a responsabilidade do Estado, que institucionalizam violações à Constituição?

São casos muito complexos – e o STF tem sido chamado a decidir a respeito deles. O mais recente, que tenta lidar com a efetivação de direitos fundamentais, é a ADPF 347, que enfrenta a tragédia da situação carcerária no país.

Não se trata de ativismo judicial, ou substituição de competências, mas sim de promover o diálogo entre os poderes

O ECI e o sincretismo

Recentemente, por meio da discussão da ADPF 347, veio à baila a tese chamada “estado de coisas inconstitucional” (ECI) – importada, como muitos dos “instrumentos” jurídicos utilizados no Brasil. Desta vez a importação foi da Colômbia, uma novidade!

Leia o artigo de Luís Henrique Braga Madalena, diretor da Academia Brasileira de Direito Constitucional.

Infelizmente, não é nova nem desconhecida a violação sistemática aos direitos fundamentais de presos, de suas famílias e daqueles que trabalham nos presídios. Relatórios da ONU apontam o uso sistemático de tortura nas prisões brasileiras. Foram concedidas diversas medidas de urgência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, para proteção da integridade física de detentos. Isso além dos pedidos de intervenção federal em estados para a proteção da dignidade dos presos. Em suma, é público e notório que o sistema carcerário desrespeita cotidianamente normas de direitos humanos. Exemplos (chocantes) são muitos, a ponto de o ministro da Justiça declarar que “preferia morrer a ficar preso no país”.

A ADPF 347 vale-se da tese do “estado de coisas inconstitucional”, originalmente utilizada pelo Tribunal Constitucional Colombiano para proteção de direitos fundamentais em situações de violação estrutural. Em vez de o STF examinar a lei ou o ato normativo, ele é instado a se manifestar acerca da inconstitucionalidade de uma situação fática, originada por ações e/ou inações do poder público. O Judiciário é chamado a coordenar um diálogo entre os poderes para que a situação de fato seja corrigida. Trata-se de pensar a Constituição para além de suas normas escritas, a fim de compreendê-la em sua concretude.

No dia 9 de setembro, houve o julgamento da medida cautelar da ação. Os ministros foram enfáticos no reconhecimento da inconstitucionalidade da situação do sistema carcerário. Entretanto, dos oito pedidos foram deferidos apenas dois: a audiência de custódia e a proibição do contingenciamento do Fundo Penitenciário. A primeira diz respeito à audiência do réu com juiz, em até 24 horas da prisão em flagrante. A segunda estabelece que o fundo para construção e ampliação de presídios deve ser integralmente aplicado. A decisão é um primeiro passo, mas foi acanhada: deixou de enfrentar aspectos fundamentais da superlotação nos presídios, especialmente os que envolvem o próprio Poder Judiciário – para que se tenha uma noção do problema, as “excepcionais” detenções “provisórias” correspondem a 41% das prisões no Brasil.

Espera-se que, no julgamento definitivo da ação, o STF aproveite o momento histórico para enfrentar as causas da superlotação e violações de direitos no sistema carcerário. Não se trata de ativismo judicial, ou substituição de competências, mas sim de promover o diálogo entre os poderes e determinar que o governo federal elabore plano nacional para superar o estado de coisas inconstitucional. Afinal, se os atuais desafios à efetivação da Constituição são cada vez mais complexos, temos de pensar em soluções criativas e progressistas para superá-los.

Egon Bockmann Moreira, doutor em Direito, é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Heloisa Câmara, mestre em Direito e pesquisadora no King’s College (Londres), é professora da Unicuritiba.
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