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A recuperação de um trecho da Mata Atlântica e a integração entre conservação e negócios
| Foto: Reginaldo Ferreira/SPVS

Entre 1999 e 2001, três corporações multinacionais (General Motors, Chevron e American Electric Power) decidiram empreender recursos no Brasil em projetos até então considerados bastante incomuns: o desafio deles seria atrelar a conservação de áreas naturais ao combate ao aquecimento global. Com a expectativa, à época, da ratificação do Protocolo de Kyoto, a premissa estabelecida por essas empresas foi a de gerar, experimentalmente, créditos de carbono a partir de ações de restauração e proteção da Mata Atlântica.

Mais tarde, o governo norte-americano acabou não ratificando o protocolo e a expectativa de créditos por parte das empresas deixou de existir. Mas os investimentos já estavam garantidos, para a aquisição de quase 20 mil hectares de fazendas no Litoral norte do estado do Paraná, em parte constituídas de pastagens, que foram transformadas em áreas de restauração a partir de um grande esforço realizado por moradores locais contratados para uma empreitada inédita na região.

Foi a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) que adquiriu as terras e assumiu a tarefa de criar e manter reservas naturais privadas estabelecidas nos municípios de Guaraqueçaba e Antonina, no Paraná. O aporte de recursos obtido por meio de uma parceria com a organização americana The Nature Conservancy (TNC) não se limitava à aquisição das áreas. Os três projetos viabilizados tinham por propósito permitir uma condição bastante rara de garantir a manutenção dos esforços de gestão das reservas constituídas por um longo período de tempo.

O orçamento anual médio de cerca de US$ 600 mil gerou empregos e uma rede de atividades voltadas a identificar caminhos para o maior bem-estar e a geração de oportunidades de renda às comunidades da região. Ao mesmo tempo, um amplo conjunto de atividades de pesquisa foi colocado em prática, em especial visando aperfeiçoar metodologias de restauração de áreas degradadas. A proteção das reservas naturais proporcionou o retorno de espécies topo de cadeia; a erosão e sedimentação dos rios e das baías de Antonina e Paranaguá foi, em parte, mitigada a partir de uma intervenção em extensas áreas de pastagens, agora cobertas de vegetação nativa.

A boa gestão, os empregos e a extensão das áreas transformadas em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) geraram um ganho adicional, com um significativo repasse do ICMS Ecológico às prefeituras locais, hoje, de aproximadamente US$ 1 milhão por ano. Além disso, todo o município de Antonina é abastecido com os mananciais totalmente protegidos pelas reservas naturais da SPVS. Outras comunidades menores da região também recebem esse benefício, como as vilas da Ilha Rasa, em Guaraqueçaba.

A sequência de demonstrações positivas proporcionadas pela presença de áreas naturais bem conservadas motivou mudanças de visão de grande parte das comunidades locais e da política regional. Antes utilizados como justificativa pela falta de uma economia forte, o conjunto de remanescentes naturais dessa região é um trunfo para o desenvolvimento regional a partir do turismo de natureza e de atividades econômicas complementares, de maior valor agregado, compatíveis com a boa conservação.

Incorporar a conservação do patrimônio natural como parte da gestão de corporações já não representa apenas uma opção. Trata-se de uma contingência a ser perseguida o quanto antes.

Em complemento ao conjunto de ações voltadas à proteção do patrimônio natural regional, surge, mais recentemente, a iniciativa Grande Reserva Mata Atlântica, abrangendo toda a região de Serra do Mar e a Planície Costeira entre o sul de São Paulo, Paraná e norte de Santa Catarina, num espetacular contínuo de 2,2 milhões de hectares. Com a implantação do conceito de produção de natureza e de uma economia restaurativa, a boa conservação se transforma em base para a geração de empregos e renda.

Decorrente das ações implementadas ao longo das últimas décadas, a iniciativa Grande Reserva Mata Atlântica representa um ambicioso trabalho, desenvolvido em parceria com várias instituições, que busca formar o primeiro grande destino de natureza consolidado no Brasil e, com isso, mudar a história de toda uma região onde o desenvolvimento convencional não obteve espaço. Ao mesmo tempo, promove a garantia da manutenção de serviços ecossistêmicos dos quais dependem milhões de brasileiros, incluindo as áreas urbanas de São Paulo, Curitiba e Joinville.

Para as empresas apoiadoras dos projetos executados pela SPVS, pode ter sido um investimento pouco significativo, considerando o porte destas corporações. Mas o exemplo aportado pela empreitada que vem colaborando de maneira muito determinante com o destino do último grande remanescente bem conservado do bioma Mata Atlântica no Brasil e no mundo representa um caso de sucesso que já deveria estar sendo seguido por outras corporações.

Incorporar a conservação do patrimônio natural como parte da gestão de corporações já não representa apenas uma opção. Trata-se de uma contingência a ser perseguida o quanto antes. Tanto para garantir maior resiliência frente a eventos extremos, evidenciados de forma cada vez mais frequente e intensa, quanto para garantir um posicionamento consistente de responsabilidade com iniciativas de interesse comum e com o futuro de toda a nossa sociedade.

Perceber que áreas naturais bem conservadas são o legado mais valioso que as gerações que estão por vir receberão de nós ainda não representa uma visão compartilhada por muitas pessoas. Mas certamente essas poucas pessoas cumprem um papel de liderança indispensável para a promoção de mudanças que são cada vez mais prementes, para a nossa qualidade de vida e para a saúde dos negócios.

Um grande número de exemplos, como o acima relatado, já está em curso em todo o mundo, mas ainda não permite mudanças de cenário em grande escala. O período de turbulência e de constatações já inquestionáveis frente à necessidade de reverter o cenário de degradação ambiental que proporcionamos em nosso planeta não aponta para outra alternativa a não ser assimilar um novo normal, que precisará conviver com negócios mais amigáveis, tanto na busca de novas tecnologias como por meio da incorporação da proteção do patrimônio natural nos negócios. Nenhuma das duas opções isoladamente será suficiente.

Na expectativa do que ocorrerá na próxima COP-26 do Clima, precisamos, como nunca, abandonar a posição de observadores passivos. É necessário acompanhar as práticas das lideranças que estão buscando fazer a diferença. Chegou a hora de assumir novas responsabilidades, relegadas ao longo das décadas em que deixamos de reconhecer a importância estratégica e fundamental de respeitar e manter o patrimônio natural.

Clóvis Borges é diretor-executivo da SPVS.

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