• Carregando...

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça recentemente decidiu não condenar o segurador a pagar o capital segurado previsto em contratos de seguro de vida na hipótese do segurado ter ingerido bebida alcoólica. O fundamento principal acatado pela Turma refere-se ao artigo 765 do código civil brasileiro, cujo conteúdo determina às partes envolvidas no contrato de seguro (segurador e segurado) o respeito à boa-fé tanto na conclusão como na execução do contrato. No entendimento adotado, o segurado estaria afrontando o princípio da boa-fé, que atua de modo mais intenso nos contratos de seguros, ao ingerir bebida alcoólica e, com isso, agravando o risco de acidente letal. Por conseqüência, estaria aumentando indevidamente a probabilidade de ocorrência da hipótese de pagamento do capital segurado pelo segurador. A questão, entretanto, merece reflexão mais apurada, levando em consideração o significado contemporâneo do contrato em si, não mais entendido como reino das vontades individuais e palco de individualismo exacerbado que outrora predominou no campo obrigacional civil.

O contrato de seguro é permeado pelo risco, fator central em sua compreensão e interpretação. Ele explica a gigantesca importância do contrato de seguro, permitindo simultaneamente a prevenção de infortúnios e a reparação ou compensação de prejuízos inesperados. Justamente pela importância do risco como elemento essencial do contrato de seguro é que a sua compreensão não deve ser efetuada de modo dissociado da realidade social.

Antes de ser um conceito jurídico, o risco é um dado da realidade social; o Direito apreende sua noção a partir das circunstâncias históricas e sociais presente em determinado período de tempo. Tal observação pode ser facilmente constatada nas inúmeras transformações tecnológicas produzidas no decorrer do século passado e que continuam a ocorrer atualmente: à medida que avança a tecnologia de transporte, citando apenas um exemplo, maiores são os riscos para as pessoas transportadas. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à bebida alcoólica e ao trânsito: o consumo de pequenas quantidades faz parte dos círculos sociais e representa risco compreensível na sociedade contemporânea. Desse modo, não pode ser utilizado como argumento para o não pagamento do capital segurado em seguros de vida.

Além da devida compreensão do risco no contrato de seguro, outra questão deve ser ponderada: a boa-fé tratada pelo código civil brasileiro não é apenas a subjetiva, referente à atitude tomada pelo segurado ao ingerir álcool, mas também a objetiva, condizente ao dever de cooperação de ambos os contratantes na concretização do projeto contratual. Neste ponto, a informação clara e destacada acerca dos incrementos de risco por parte do segurador – inclusive quanto ao consumo de bebida alcoólica e a quantidade dessa ingestão – no momento do fechamento do contrato é crucial para determinação ou não da obrigação de pagamento do capital segurado. A problemática insere-se justamente na confiança depositada pelo segurado e, de modo especial, na crença dos beneficiários do seguro de vida que estão protegidos financeiramente quanto à eventual morte do segurado – daí a importância social do contrato de seguro. Tal confiança é protegida pelo Direito, assim como os efeitos sociais dos contratos devem ser tomados em conta por força da cláusula geral da função social dos contratos, e tais ditames somente serão respeitados se o segurado tiver plena consciência dos graus de incremento de risco, o que não se faz presente na maioria das contratações de seguro de vida.

Tais reflexões permitem dizer que muitas vezes a compreensão do risco no contrato de seguro não leva em conta a realidade a sua volta. Toda e qualquer interpretação do contrato de seguro deve tomar em consideração o dever de cooperação de ambos os contratantes (segurador e segurado), de modo que a simples ingestão de pequenas quantidades de bebidas alcoólicas não exclui, por si só, o dever de pagamento pelo segurador do capital segurado.

Eros Belin de Moura Cordeiro, mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR, é professor de Direito Civil da Universidade Positivo.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]