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Ainda motivado pela ampla reportagem de Athur Lubow, publicada em 20 de maio no New York Times, sobre o perfil inovador de desenvolvimento urbano implantado em Curitiba por Jaime Lerner, registro: a reciclagem do lixo veio em dias em que isso era "coisa de sonhador".

Foi o primeiro passo nacional para prevenir o caos do aquecimento global hoje anunciado. Intuição aguçadíssima e bom senso administrativo ao implantar políticas públicas que, 36 anos depois, apenas se insinuam no resto do país.

Ao trabalho pedagógico (recolher lixo não dá dinheiro ao poder público) Lerner deu o nome "Lixo que não é Lixo", com frota especial de caminhões e usina pioneira de reciclagem em Campo Magro; como conseqüência, surgiram os "carrinheiros", vivendo de recolher o lixo limpo.

Com Lerner chegou-se a recolher 34% do lixo da cidade, hoje não passariam dos 22%, segundo o jornalista do New York Times. Depois veio o "Câmbio Verde", garantindo gêneros alimentícios em troca de lixo em áreas periféricas.

Para Arthur Lubow, Lerner é "o arcanjo de Curitiba". Para mim, foi aquele que abortou o Armagedon urbano, evitando-o entre nós, ao implantar doze parques urbanos, áreas verdes de lazer e preservação do ecossistema. Obra que se consolidaria com o Jardim Botânico, com seu "Palácio de Cristal", a que deu o nome de Fanchette Rischbieter, a assessora, amiga e "alter ego" que ousava contrariá-lo e exerceu trabalho de olhos e ouvidos do "rei" na garantia da implantação do Plano Diretor, este concebido por Jorge Wilheim, de que Lerner foi o executor com amplas "licenças poéticas". Com tais ações, a cidade soterrou a "aldeia sinistra", um dos apelidos menos cáusticos que tinha até 1971. Foi trabalho assentado no tripé transporte de massa, preservação do meio ambiente e desenvolvimento industrial sustentável e gerador de emprego e renda (com a CIC).

"Capital Ecológica" é mote dos anos 80, fixou bandeira administrativa que se mostrou corretamente premonitória. Premonição que anda junto de tipos humanos especiais, visionários e estadistas, como Lerner.

Assim como de estadista deve ter sido sua decisão de montar o metrô de superfície, com os ônibus expressos andando em pista exclusiva, alternativa ao metrô tradicional para o qual não havia – e não há – dinheiro suficiente. Pelos cálculos de Lerner, o custo do metrô é cem vezes maior do que o de superfície para o atendimento do mesmo número de passageiros.

Da ampla visão ecológica há ainda, nos anos 70, a Universidade Livre do Meio Ambiente, um centro referencial de estudos ecológicos e fixador de mentalidade, disseminador de disciplina até então parecendo devaneios urbanísticos. Cleon Ricardo dos Santos foi seu primeiro reitor.

Da equipe de Lerner, além de Rafael Dely, há outros do mesmo padrão, como Lubomir Ficinski, Cássio Taniguchi, Angel Bernal, Carlos Eduardo Ceneviva, Erick Frick, Manoel Coelho (arquiteto de universidades e designer de grandes marcas), Abrão Assad com seu mobiliário urbano.

Foi com gente como essa que as idéias de Lerner ganharam o mundo e admiração, sendo expostas até em praça pública, como quando expressos e estações-tubo foram expostos em Nova York. Trabalho de uma equipe que, por exemplo, concebia moradias populares a baixo preço, de bom gosto, diferenciadas, fugindo à padronização de grandes conjuntos. Tudo acompanhado da montagem de estoques de terras para futuras obras.

Na área social, lato sensu, houve feitos ainda não igualados, como o Vale Creche e muitas dezenas e dezenas de creches pessoalmente atendidas por Fani Lerner e suas voluntárias, de todos estratos sociais, que iam à população periférica, preparando mão-de-obra para que creche não mais fosse um depósito de crianças carentes.

A usina de criatividade foi sempre identificada com o IPPUC, a "Sorbonne do Juvevê", cognome em homenagem à França e Paris, onde o creme do creme dos urbanistas curitibanos foi formado, sob o mecenato de madame Hélène Garfunkel, mãe de Fanchette. Da Rua Bom Jesus e suas pranchetas saiam as novidades essenciais para a alma da cidade, todos os dias. Ora nasciam os ônibus biarticulados; ora ônibus "ligeirinhos"; depois, as gibitecas ou as reciclagens de prédios, como o da Confeitaria Schaffer, para ser um pólo cultural. Nessa área Lerner teve notáveis, como Maí Nascimento Mendonça (ninguém conhece Curitiba e sua história melhor do que ela), Aramis Millarch, Lúcia Camargo, Alfred Willer, Ernani Buchmann, Maria Elisa Paciornick, Lídia Dely, Guido Viaro, Nireu Teixeira. Área que garantiu os objetivos do Centro de Criatividade, cujo nome dispensa adjetivos. Isto sem falar num gabinete prefeitural com nomes como Jaime Lechinski, Henrique Naigeboren (uma raridade de ser humano), Eduardo Virmond, Nestor Bueno, Gerson Guelmann, o fiel escudeiro, "fac totum" insubstituível, Duda Camargo, Jaira Barreto.

Mais importante de tudo: esses tempos imprimiram um orgulho, o de "ser curitibano", que permanece. Orgulho que alavancou a valorização das raízes étnicas e suas expressões culturais, como o "leite quente", valores expostos por um dos filhos mais representativos de Curitiba, nascido de dona Elza e seu Felix, poloneses fugidos do Holocausto que se avizinhava na Europa. E aqui geraram rebentos, dentre eles, Jaime, cidadão do mundo, cuja dimensão o fez compor recente exposição mundial em Chicago que o colocou entre os 20 replicantes modernos de Leonardo Da Vinci. Uma seleção mundial de inquietos e insuperáveis criadores, o que apenas fez justiça ao melhor identificador de Curitiba no mundo.

NB: O xadrez gigante chegou a ser colocado na Praça Generoso Marques e não na Praça Santos Andrade, conforme escrevi na primeira parte deste artigo.

Aroldo Murá G. Haygert é jornalista e presidente do Instituto Ciência e Fé; foi editor da série de livros "Memória da Curitiba Urbana". www.cienciaefe.org.br

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