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Ruído de ocasião e as limitações das decisões dos juízes
| Foto: Pixabay

Você sabia que um mesmo caso, apresentado ao mesmo juiz, em momentos diferentes, ou mesmo em horários diferentes, acaba sendo julgado de forma diferente? Segundo pesquisa realizada nos Estados Unidos, os juízes mudam seus julgamentos sobre um mesmo caso em mais de 50% das vezes. Isso é grave, mas também é natural. Afinal, a mesma realidade foi identificada em médicos, psiquiatras e diversos outros tipos de analistas ou julgadores. Simplesmente não podemos nos isolar do efeito externo ao decidir.

A simples decisão de dar ou não uma esmola pode estar associada ao estado de espírito da pessoa, a um filme que ela acabou de ver, ou até à aparência do pedinte que bateu à porta. Não é por outro motivo que aumenta o número de pessoas nos sinais de trânsito brasileiros durante o período das festas de fim de ano.

Quanto mais abertura à subjetividade, mas estaremos propensos a falhar, ou mudar, ao sermos expostos ao mesmo contexto num segundo momento. Essa falha em nossa capacidade de julgar foi chamada de “ruído de ocasião” – o que difere, por exemplo, dos já estudados vieses cognitivos, que são uma tendência de que os julgamentos sigam sempre a mesma direção.

Quanto mais abertura à subjetividade, mas estaremos propensos a falhar, ou mudar, ao sermos expostos ao mesmo contexto num segundo momento.

Por exemplo, tendemos sempre a ver pessoas mais idosas como mais sábias e honestas. Foi por isso que me surpreendi muito ao ser assaltado por um homem que já havia ultrapassado seus 70 anos, mas guardava habilidade para transitar em uma bicicleta e para portar uma arma ao me abordar. Ao avaliar o risco de que um transeunte venha a agredi-lo, certamente os menos idosos vão lhe gerar mais atenção, não é verdade? Isso não é um ruído, mas um viés, especificamente por se repetir da mesma forma para a maioria das pessoas. Já um ruído não tem direção certa; é apenas um desvio difícil de prever frente ao objetivo desejado. Não ocorre da mesma forma para pessoas diferentes, nem para a mesma pessoa em momentos diferentes.

O ruído não é parte apenas de quem tem a competência de julgar em processos judiciais, existindo fortemente nas decisões médicas também. Porém, neste campo, diferentes práticas já foram adotadas para minimiza-lá. Dentre elas está, por exemplo, o uso de algoritmos de inteligência artificial, como no caso já alardeado do Watson da IBM, treinado para diagnosticar câncer de pele, e de vários outros robôs que fazem pré-diagnósticos. São ferramentas que, fazendo uso de um viés humano – o da ancoragem –, reduzem a possibilidade de que um médico julgue o resultado de forma muito distinta da máquina. Na ancoragem, a informação recebida por quem deve decidir impregna e conduz a direção da decisão. Este é o motivo pelo qual o primeiro a falar um valor em uma negociação conduz a direção que ela toma.

Mas não é só por inteligência artificial que a medicina busca se proteger; ela também usa opções como fragmentar uma análise e se beneficiar da sabedoria das multidões. A primeira opção é, por exemplo, a usada por pediatras para medir a saúde de um recém-nascido, havendo cinco características objetivas que eles precisam avaliar, como batimentos, temperatura corporal e até cor da pele. Isso, por si só, reduz o ruído ao dar valoração objetiva a cada característica observada.

Já a sabedoria das multidões está associada ao fato de que a média de vários julgamentos é, no fim, mais acurada que o julgamento de um só especialista. Por esse motivo, quando há um maior risco envolvido para o paciente, não é incomum formar-se uma junta médica ou ser indicada a busca por uma segunda opinião.

Mas e dentro do universo da justiça, o que existe para combater esses ruídos? Estarei errado se afirmar que a resposta mais provável é “nada”?

Nosso formato de atuação jurídica continua pautado em uma tecnologia da época da Roma Antiga, ou talvez seja até mais justo dizer que ainda tem muito da época dos grandes faraós do Egito. Passagens bíblicas como a de Salomão e a disputa por um filho ainda guardam grande semelhança com o que ocorre em algumas varas cotidianamente.

Será que já não estaríamos vivendo o momento de repensarmos esse formato? Será que as tecnologias disponíveis e os conhecimentos atuais não poderiam nos ajudar a criar um novo modo de gerar decisões judiciais?

Da mesma forma que a medicina incorporou esforços para redução dos ruídos a que era exposta, acredito que o Judiciário deveria buscar caminhos semelhantes. Por exemplo, beneficiando-se da sabedoria das multidões, como abordamos antes. Obtém-se tal efeito quando mais de uma pessoa julga um mesmo caso e, a partir do resultado de cada um, se extrai uma média para adotar como melhor opção; mas isso não é o equivalente ao uso permanente de jurados. Para um correto julgamento e um resultado ponderado ideal, todos os participantes deveriam ter a mesma capacidade prévia de julgar, o que não ocorre quando se escolhe um grupo de pessoas comuns.

Neste ponto, a tecnologia poderia ajudar. Já desenvolvemos uma ferramenta que é capaz de, com 98% de assertividade, entender as decisões judiciais. Facilmente poderíamos treinar essa inteligência artificial para, por exemplo, separar e agrupar decisões a partir de temáticas semelhantes, o que poderia gerar, para o juiz, uma visão e efeito do alcance da sabedoria da multidão – mas uma multidão de juízes, não de pessoas comuns. O efeito imediato poderia ser a redução da variabilidade das decisões judiciais sobre casos equivalentes, o que ferramentas como o IRDR já tentam fazer, mas não conseguem o alcance que algoritmos poderiam gerar. O poder de decisão não estaria sendo retirado do juiz, mas uma nova camada de lastro para sua escolha estaria sendo gerada.

Um outro passo, a exemplo do já presente na medicina, também poderia ser adotado: o de decomposição de um julgamento em partes diferentes. Em vez de julgar um todo de pronto, analisar cada caso em partes separadas, por meio de atribuição de peso a cada condição distinta, podendo tanto ser definido o resultado de cada parte pelo juiz diretamente quanto com ajuda de softwares.

Por exemplo, ao se julgar quando o bem vida supera o direito de negar o atendimento de um problema psiquiátrico por um plano de saúde, a decisão poderia ser decomposta em: analisar a oferta de cobertura do plano, o nível de necessidade do paciente, a capacidade econômica do mesmo e a localização geográfica da família frente à disponibilidade com cobertura apresentada pelo plano. Só com uma ponderação destas variáveis de forma objetiva, colocada para o julgador, seria possível gerar uma decisão final.

Uma vez que toda essa parte objetiva fosse realizada por uma máquina e apresentada ao juiz já como uma análise indicativa da decisão, o magistrado teria maior possibilidade de julgar sob um menor efeito do ruído de ocasião. Isso por já ser do conhecimento da psicologia que, cada vez que olhamos um caso, ainda que semelhante a um anterior, adotamos pesos diferentes para as mesmas variáveis, o que nos faz ceder aos efeitos externos ao decidir. Estudos realizados em Israel já demonstraram que quanto menor o nível de glicose no sangue, mais dura será a decisão de um juiz.

Ou seja, existe espaço para, com uso eficiente e estudado do que existe de mais atual em inteligência artificial, conseguir criar um modelo alternativo de funcionamento do Judiciário, provavelmente mais justo, eficaz e coerente que o que temos hoje. Isso tudo sem retirar daquele que tem a responsabilidade por dar a palavra final o poder que lhe é atribuído.

Não temos mais como frear a tecnologia, mas também não devemos baixar completamente a cabeça para ela. Isso não significa que não devamos usá-la para tornar nossa atuação como operadores do direito cada vez melhores.

Christiano Sobral é advogado, administrador e programador, Law Master em Direito Digital, mestre em Estratégia e especialista em marketing, finanças, economia e negócios.

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