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Mesmo com o futuro ameaçador, poderemos comemorar as conquistas dos últimos 20 anos. Mas o gosto da vitória não pode nos confundir. O cigarro ainda fede. Cheira a morte, doenças e nicotina

Quando caminho pela rua, a fumaça ainda incomoda. Só que agora, o cheiro não é só do tabaco, mas de cravo, menta, canela e tantas outras substâncias adicionadas ao cigarro. Nos últimos 20 anos, a prevalência de fumantes no Brasil caiu de 32% para 17%, o que representa quase 10 milhões de dependentes a menos no país. A indústria do tabaco, por sua vez, tem investido para reverter esse quadro e conter a queda nas vendas.

A população de consumidores de cigarro está envelhecendo ou morrendo. A maioria de fumantes concentrada na faixa etária entre 18 a 35 anos na década de 1980 agora já está em outra faixa de idade, entre 30 a 59 anos. A indústria do tabaco, ao perceber a perda de mercado, agiu para criar um novo exército de dependentes. A adoção de aditivos aos cigarros é a estratégia que vem sendo usada para atrair novos usuários.

Os aditivos são substâncias utilizadas para agravar a dependência e minimizar o gosto desagradável do tabaco e dos produtos contidos na fumaça. Cravo, menta e açúcar são alguns dos aditivos mais usados. Entre 2008 e 2010, 20 novas marcas de cigarro com sabor entraram no mercado, um crescimento de 100%.

O uso de aditivos também causa a sensação de estar consumindo um cigarro menos nocivo à saúde, o que é uma mentira. Pelo contrário, o sabor adocicado esconde a nicotina, a principal causadora da dependência, e a queima de algumas dessas substâncias pode trazer sérios danos à saúde. O açúcar, por exemplo, quando queimado, produz o acetaldeído, composto altamente tóxico. Juntando-se os aditivos ao alcatrão, conjunto de substâncias causadoras de câncer e enfisema pulmonar já presente em todos os cigarros, o poder tóxico e de dependência é potencializado.

O cigarro, com ou sem sabor, possui 66 substâncias cancerígenas. Pesquisas mostram que 90% do número de casos de câncer de pulmão têm o cigarro como causa direta da doença. Essas informações são hoje extensamente divulgadas e conhecidas pela população. Com as severas restrições à publicidade e o amplo conhecimento dos males do cigarro, a opção pelos aditivos torna o cenário ainda mais trágico. A indústria admite, ao usar esse recurso, o perfil de usuário que deseja cooptar. O gosto doce de balas e chicletes nunca foi tão amargo.

A restrição aos aditivos em cigarros já é alvo de tentativa de regulação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em fevereiro, a Anvisa abriu consulta pública sobre o assunto. Indústria e agricultores de tabaco se mobilizaram para retardar a aplicação da medida, enviando mais de 200 mil sugestões à agência. Como a decisão só pode ser aprovada depois da análise do material gerado pelo debate, as empresas do tabaco conseguiram adiar a restrição.

O Conselho Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco já apresentou dados que permitem afirmar que o tabagismo é uma doença pediátrica. Segundo o relatório, 90% dos fumantes regulares começam a fumar antes dos 18 anos de idade.

Mesmo com o futuro ameaçador, poderemos sim comemorar as conquistas desses últimos 20 anos. Mas o gosto da vitória não pode nos confundir. O cigarro ainda fede. Cheira a morte, doenças e nicotina. Marcos Moraes é presidente do Conselho de Curadores da Fundação do Câncer e da Academia Nacional de Medicina.

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