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Centenas de mulheres são diariamente hos­­pi­­talizadas por consequência das brutais ten­­tativas de interrupção da gestação

A eleição presidencial foi repentinamente dominada pelo tema do aborto. Nota positiva merece a Igreja Católica, que ao perceber a tentativa da obtenção de seu apoio eleitoral tácito, manifestou, por seus representantes, não defender diretamente nenhum candidato e haver assuntos de interesse nacional que deveriam estar na pauta dos postulantes, como educação, desenvolvimento econômico, política internacional, que estão negligenciados pelas acusações de defesa, ou combate, ao aborto.

A verdade é que ninguém defende o aborto, ou seja, ninguém propugna para que as mulheres simplesmente o realizem, como se a gravidez fosse um ato banal. Porém há posição séria que ve­­rifica ser a sua criminalização, mecanismo ab­­solutamente ineficaz na redução de sua ocorrência e fonte de prisionalização de mulheres das classes C, D e E, enquanto as mais abastadas o realizam livremente, em clínicas bem aparelhadas e com todo o conforto que o dinheiro é capaz de propiciar.

Centenas de mulheres são diariamente hospitalizadas por consequência das brutais tentativas de interrupção da gestação, como o uso de agulhas de tricô e os golpes de martelo no próprio ventre. Enquanto isso, a hipocrisia de abordar a questão como tema criminal segue produzindo sofrimento à população feminina, sem reflexo positivo ou qualquer proteção da vida.

Ofertar tratamento criminal representa não solução, vez que as punições criminais são puro ato de vingança estatal, desprovidas de efeito positivo, produzindo o imobilismo da classe com poder decisório, que atua como se as respostas possíveis já tivessem sido dadas, quando nada foi feito.

O aborto diz respeito a histórias de sofrimento e abandono de muitas mulheres em um momento de extrema dificuldade. Sua descriminalização impõe obrigação ao Estado de deixar o imobilismo e a cômoda posição de transferir problemas para as leis penais, o que conduz à verificação que se está diante de matéria afeta à saúde pública e não à delegacia de polícia.

A população está dominada pela retórica do pânico, geradora da emocional defesa das medidas punitivas, o que torna fácil e simpático defender barbaridades, como trabalhos forçados, pena de morte, golpes de Estado travestidos de reforma constitucional e cadeia para mulheres pobres dian­­te do terrível drama da gravidez indesejada. Mas não é o honesto e eficaz a se propagar, pois somente a orientação social, a difusão dos métodos contraceptivos, as políticas de saúde e de apoio à mulher são capazes de produzir efeito satisfatório.

O imbróglio eleitoral sobre o aborto em nada contribui para o desenvolvimento da matéria, representando condução irresponsável de sensível problema humano, deixando de deslocar a questão do vingativo mundo das punições para o da responsabilidade estatal da atuação em prol da dignificação humana.

Devem-se desenvolver as bases do humanismo no Brasil, com o fortalecimento do respeito à vida, protegendo seres humanos em formação, mas também mulheres afetadas por um drama pessoal extremo e que em desespero praticam o aborto, com uso dos mais rudimentares meios, que se não lhes ceifam a vida, produzem estigmatização e perseguições.

A defesa da descriminalização do aborto não deve ser confundida com a defesa de sua prática, confusão esta que só serve para desacreditar aqueles que por propugnarem tanto pela vida humana desejam que o Estado tenha responsabilidade em auxiliar as pessoas nos momentos de maior sofrimento, ao invés de tratá-las como bandidos.

Milton Nascimento deve ser lembrado para afirmar que o desespero não serve para transformar os milhões de Marias, que necessitam de auxílio, em criminosas: "Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor. É a dose mais forte e lenta. De uma gente que ri quando deve chorar. E não vive, apenas agüenta. Maria, Maria, mistura a dor e a alegria. Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça. É preciso ter so­­nho sempre. Quem traz na pele essa marca. Pos­­sui a estranha mania de ter fé na vida".

Adel El Tasse, procurador federal, doutorando em Direito Penal, é professor de Direito Penal.

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