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O debate de temas polêmicos como o aborto costuma despertar “certezas” apaixonadas que são defendidas agressivamente, em vez de uma adequada análise das evidências e argumentos apresentados. Para qualificar o debate atual sobre o tema, é preciso esclarecer algumas questões fundamentais, tanto teóricas como de supostas estatísticas apresentadas. E há seis pontos centrais que devem ser considerados quando o tema é o aborto, com base especialmente em pesquisas de qualidade realizadas em países da América Latina, pela similitude sociocultural com o Brasil.

Em primeiro lugar, o debate sobre o aborto não se restringe a uma questão científica ou de saúde pública; trata-se de uma discussão principalmente ética: se temos ou não o direito de eliminar um feto no útero da mãe. Assim como foi fundamentalmente ético o debate público sobre abolição da escravidão no século 19 e o debate atual sobre a pena de morte. Os dados científicos podem fornecer subsídios à discussão, mas a questão básica é se o aborto deve ou não ser praticado. A ciência busca descrever como as coisas são, e a ética reflete sobre como deveríamos agir. Naturalmente, as escolhas éticas devem também levar em consideração dados científicos, pois eles nos informam qual a situação atual e quais as consequências das diversas opções de conduta.

Com isso em mente, chegamos ao segundo ponto: o princípio ético da autonomia da mulher (e do homem) deve ser levado em conta, mas precisa ser contrabalanceado pelos princípios éticos da beneficência e não maleficência (em relação ao feto). A nossa liberdade de ação não é ilimitada; ela deve considerar o impacto que pode ter sobre as pessoas e o mundo em que vivemos. No aborto, não está em questão somente o que a mulher faz com seu próprio corpo, mas o que ela e o pai farão com o corpo do feto que geraram. Não há nenhum argumento biológico que justifique ser o feto parte do corpo da mulher, pois ele é geneticamente diferente, tem sistema nervoso e circulatório diferentes do da mãe. Ou seja, é um outro ser vivo que depende da mãe antes e mesmo depois de anos do nascimento para ser cuidado, alimentado e se desenvolver.

A nossa liberdade de ação não é ilimitada; ela deve considerar o impacto que pode ter sobre as pessoas e o mundo em que vivemos

O terceiro aspecto é o da superestimação de dados. Há fortes indícios de uma estratégia retórica de superestimação do número de abortos clandestinos e de mortalidade materna decorrente desses abortos como justificativas para sua liberação. Pela falta de dados oficiais, é sempre muito arriscado calcular o real número de abortos clandestinos. Assim, a melhor estratégia é analisar o número de abortos que ocorrem logo após sua legalização. Na Cidade do México e no Uruguai, os abortos efetivamente realizados após a liberação foram até dez vezes menores que as estimativas prévias de abortos clandestinos feitas pelos defensores do aborto em suas campanhas. Sobre mortalidade, as melhores pesquisas publicadas em revistas científicas internacionais mostram que no Brasil, no México e no Chile o aborto (espontâneo e provocado) responde por uma parte muito pequena (2% a 4%) do total de mortalidade materna, a qual vem caindo continuamente ao longo das últimas décadas. Segundo dados oficiais do DataSUS, no Brasil, em 2016, houve 1.670 casos de morte materna (relacionadas à gestação, parto e puerpério). Desse total, 3% representariam 50 mortes relacionadas ao aborto, o que é próximo dos 56 casos de morte materna relacionados ao aborto (induzido e espontâneo) efetivamente registrados no DataSUS.

Mesmo contando com considerável subnotificação, chega-se a cifras dezenas de vezes menores que os vários milhares anunciados nas campanhas. No entanto, toda vida humana deve ser preservada. Assim, é preciso perguntar: será que a liberação do aborto reduz a mortalidade materna? Este é o nosso quarto ponto. Os experimentos naturais ocorridos no México (que liberou o aborto em alguns estados em 2007) e no Chile (que proibiu o aborto em 1989) indicam que as mudanças na legislação do aborto (seja proibindo ou liberando) não impactaram as taxas de mortalidade materna. No México, inclusive, os estados com legislações menos permissivas ao aborto têm menor mortalidade materna. Segundo esses estudos, o que efetivamente diminui a mortalidade materna é a melhora do nível educacional das mães e dos cuidados oferecidos à gestante . Ou seja, se a meta for realmente evitar a mortalidade materna, esses deveriam ser o foco das campanhas.

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Além disso, há consistentes evidências (de Espanha, EUA, México e Uruguai, por exemplo) de que a liberação do aborto gera um grande aumento no número de abortos realizados nos anos seguintes. Nos EUA, onde a legalização ocorreu no início dos anos 1970, os abortos realizados subiram de 600 mil, em 1973, para 1,3 milhão, em 1979. Na Espanha, onde o aborto foi legalizado em 1985, a prática subiu de 16 mil, em 1987, para 49 mil em 1997, e para 115 mil em 2008. Lorde Steel, um dos líderes da legalização do aborto na Inglaterra, embora ainda defendendo essa posição, reconheceu que não havia previsto o grande aumento de casos de aborto e que este seria usado de modo “irresponsável” e “como uma forma de contracepção”, como ele lamenta que tem ocorrido por lá.

Por fim, chegamos ao sexto ponto: ao contrário do que muitas vezes se veicula, a oposição à legalização do aborto não é um confronto entre “homens brancos ricos” e “mulheres negras pobres”. O mais recente levantamento sobre a opinião do brasileiro em relação ao aborto (Ibope, fevereiro de 2018) mostra que a oposição à sua legalização é igual entre homens e mulheres e maior entre a população de menor renda e de cor preta/parda. A maioria da população brasileira (80%) é contra a legalização do aborto e apenas 15% são a favor. O apoio à legalização do aborto não chega a 25% em nenhum estrato da população em termos de idade, sexo, renda, escolaridade, religião, cor ou região do país.

Temas tão relevantes e valiosos como a saúde, a dignidade feminina e a geração de novas vidas merecem ser tratados com maior rigor, equilíbrio e busca sincera da verdade e do bem comum.

Alexander Moreira-Almeida, médico com pós-doutorado pela Duke University (EUA), é professor associado de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
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