• Carregando...
 | Marcos Santos/USP Imagens
| Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Alguém que tenha curiosidade em saber como era o dia a dia de um cidadão alemão no período de hiperinflação vivido entre as duas grandes guerras mundiais poderá encontrar facilmente recordações que refletem o cotidiano de um país que sofre com esse problema econômico: fotos de pessoas indo ao mercado com carrinhos de mão para carregar a quantidade de cédulas necessárias para as compras cotidianas, de crianças brincando de empilhar dinheiro e de donas de casa acendendo a lareira com notas de marcos (moeda alemã até o final da década de 1990, antes da implantação do euro) que perdiam rapidamente seu valor.

Voltando para os dias atuais, em nossa vizinha Venezuela, é possível observar registros semelhantes. Sem dificuldades, podemos entrar em contato com vários relatos de habitantes desse país pesando dinheiro para realizar uma compra, em vez de contar as cédulas que serão utilizados como meio de troca para se adquirir alimentos ou bens de necessidades básicas cada vez mais restritos no país.

Brasileiros nascidos até meados da década de 1980 recordam como era sair de casa com um maço de dinheiro para comprar produtos básicos, e que poderia ser insuficiente para adquirir uma boa parte dos mesmos produtos no mês seguinte. As pessoas corriam para o supermercado no dia do pagamento para realizar compras para um mês inteiro, e que podiam encher dois ou três carrinhos de supermercado. Era necessário rapidez, já que era comum um funcionário do estabelecimento passar diariamente com a temida maquininha de remarcar preços. As etiquetas de preços se acumulavam, uma em cima da outra. As filas para comprar bens da cesta básica podiam ser extensas, devido à escassez de alguns produtos.

As relações entre a política fiscal e monetária são mais estreitas e perniciosas do que podem parecer

As consequências vividas pelos países dos exemplos acima – e por vários outros que passaram ou passam por processos hiperinflacionários – afetam duramente os mais variados seguimentos da sociedade: perda de poder de compra do salário e da poupança, instabilidade política, dificuldade de planejar o investimento de longo prazo, baixo crescimento. Mas esses eventos de elevada e persistente inflação teriam alguma causa em comum? Há um fenômeno econômico observado igualmente em todos esses países e que poderia ser cogitado como determinante da chamada hiperinflação? Já adiantamos algumas evidências: aparentemente, a maioria dos casos de hiperinflação persistente foi precedida de um profundo desajuste fiscal do setor público.

À primeira vista, essa relação pode soar um pouco estranha: aparentemente, a inflação é um problema da política monetária e da autoridade designada a gerenciá-la, ou seja, o Banco Central. Mas as relações entre a política fiscal e monetária são mais estreitas e perniciosas do que podem parecer.

Vejamos alguns fatos históricos que podem nos ajudar a ilustrá-la: durante a Primeira Guerra Mundial, o Reichsbank, o banco central alemão, apoiado pelo seu então presidente, Rudolf von Havenstein, usou seus recursos para realizar um amplo apoio financeiro à guerra. Enquanto a população trocava suas reservas por papel-moeda emitido pelo banco, o marco perdia rapidamente seu valor. O Tesouro alemão elevava drasticamente sua dívida, que foi ampliada ainda mais após o Tratado de Versalhes, em junho de 1919. A única solução encontrada por Havenstein foi imprimir mais e mais dinheiro.

Leia também: A gangorra da inflação (editorial de 27 de agosto de 2018)

Leia também: Os bons ventos da taxa Selic (artigo de Layon Dalcanali, publicado em 18 de maio de 2018)

No Brasil, o Plano de Metas liderado por JK e a construção de Brasília ampliaram fortemente o déficit orçamentário do setor público, que também foi financiado pela expansão da oferta de dinheiro. As consequências econômicas foram drásticas, com a inflação medida pelo IGP alcançando 79,90% em 1963 e 92,1% em 1964, o que provavelmente influenciou a instabilidade política que levou à tomada do poder pelos militares em 1964. O ambicioso sonho de um Brasil grande bancado pelo governo militar levou a um novo processo de desajuste fiscal no fim da década de 1970; catalisada por dois choques no preço do petróleo, teve início a chamada década perdida, com a inflação medida pelo IPCA alcançando 1.972,91% em 1989 (82,39% apenas no mês de março de 1990) e 2.477,15% em 1993. Nossas peculiares instituições orçamentárias, financeiras e monetárias – tais como o orçamento monetário não sancionado no Congresso e elaborado à parte do orçamento fiscal, a existência de bancos públicos estaduais e a conta de movimento entre o Banco do Brasil e o Banco Central – ajudaram a agravar esse quadro.

E como a teoria econômica explica essa relação, chamada de “aritmética desagradável” em 1981 pelo prêmio Nobel em Economia Thomas Sargent e por seu coautor, Neil Wallace?

Se considerarmos que uma inflação persistente é causada por um aumento do estoque de moeda em circulação na economia maior do que a produção real de bens e serviços, a responsabilidade pela perda do valor de compra do dinheiro seria daqueles que operam a política monetária do banco central. Contudo, em determinadas situações, a autoridade pode se encontrar em uma relação passiva frente à dinâmica da política fiscal. Em outras palavras, se as finanças do setor público operam com sucessivos déficits primários, de tal forma que a dívida do governo é vista como impagável por aqueles que a financiam, o banco central pode se ver em uma situação em que terá de “monetizar essa dívida”, isto é, expandir a base monetária para adquirir a dívida que o setor privado passou a rejeitar. Quando isso ocorre, a autoridade responsável por proteger o poder de compra da moeda nacional perde a capacidade de atingir aquele que deveria ser seu principal objetivo. Por isso, a inflação é chamada pelos economistas de “imposto inflacionário”. Tal como ocorre com um imposto padrão, os cidadãos têm sua renda real reduzida para financiar, em última instância, os gastos do setor público.

A inflação é chamada pelos economistas de “imposto inflacionário”

A segunda teoria, conhecida no âmbito acadêmico pelas sua sigla em inglês, FTPL (Fiscal Theory of the Price Level, desenvolvida por Leeper, Sims e Woodford), interpreta a passividade monetária de maneira menos estrita do que a teoria anterior e postula que, em um regime de dominância fiscal, a autoridade monetária se limita a seguir uma trajetória constante de taxas nominais de juros. Mesmo sem a geração massiva de senhoriagem destinada a cuidar da solvência intertemporal do setor público consolidado que ocorreria num mundo à la Sargent-Wallace, a inflação apareceria porque, ante reduções de impostos e/ou aumentos de despesa pública, os indivíduos se sentiriam mais ricos ao saberem que, no futuro, o governo não neutralizaria essa expansão fiscal com aumentos de impostos e/ou corte de gastos. Essa política fiscal “não Ricardiana” (aquela implementada por uma autoridade fiscal não preocupada com a sustentabilidade da dívida pública) levaria os consumidores a se desfazerem dos títulos públicos para comprarem bens e serviços. O aumento resultante da demanda agregada elevaria o nível de preços.

Num regime como o descrito acima, só existiria esse canal de maior inflação atual como via para restaurar o equilíbrio fiscal. Neste estranho mundo, a política monetária apenas escolhe a distribuição da inflação entre presente e futuro, mas não pode determinar o tamanho dela, que se torna um fenômeno puramente fiscal. Países que se encontrassem perto dos seus limites fiscais não teriam espaço para aumentar impostos (por estarem situados no pico da curva de Laffer) ou cortar gasto público (fundamentalmente pelo processo incontornável de envelhecimento demográfico). Qualquer expansão fiscal atual não seria compensada por consolidações fiscais futuras, o que daria lugar a um efeito riqueza positivo que elevaria os preços dos bens e serviços.

No Brasil, desde 1999, ambas as autoridades responsáveis pelas políticas econômicas trabalham seguindo uma espécie de contrato entre as partes. O Banco Central, responsável pela política monetária, passou a definir a taxa de juros, seu principal instrumento de política, de acordo com o objetivo de atingir uma meta de inflação que lhe foi designada pelo Conselho Monetário Nacional. A política fiscal, por sua vez, deveria comprometer-se com uma meta de superávit primário que garantisse a solvência da dívida pública, possibilitando ao Banco Central do Brasil realizar o seu trabalho com mais facilidade e com um custo cada vez menor para a população, uma vez que a taxa de juros necessária para atingir a meta tenderia a diminuir à medida que as finanças públicas estivessem bem ancoradas e a política monetária fosse crível.

Leia também: O PIB e a estagnação da economia brasileira (artigo de Gilmar Mendes Lourenço, publicado em 30 de maio de 2018)

José Pio Martins: O que o governo não é (publicado em 11 de outubro de 2018)

Parecia que as coisas andariam bem dessa vez. Só parecia. Desde 2006, o superávit primário apresenta uma tendência de redução, saindo do patamar de 3,74% do PIB em 2005 para um déficit de 2,47% em 2016 e de 1,7% em 2017. No mesmo ritmo, a dívida bruta do governo geral (DBGG) sai de 55% do PIB em 2006 e alcança 73% em 2017. Atualmente, o ajuste necessário para gerar um superávit primário suficiente para estabilizar a trajetória de crescimento da relação DBGG/PIB é de aproximadamente R$ 350 bilhões e o relatório Fiscal Monitor do FMI prevê que o país só voltará a apresentar superávit primário em 2020, quando o valor da dívida estará próximo de 95% do PIB.

Por sorte, a confiança na política monetária parece ter sido restabelecida e a inflação de 2017, medida pelo IPCA, ficou em 2,95% (com previsão de aproximadamente 4,15% para 2018), um dos menores níveis da história, possibilitando uma significativa redução da taxa de juros e, consequentemente, do custo de financiamento da dívida pública. Mas uma pergunta desagradável é feita constantemente: o que vai ocorrer se o governo não conseguir estabilizar a tendência de crescimento da dívida pública? Estaríamos destinados a passar novamente pelos problemas da década de 1980, quando os elevados déficits fiscais eram sustentados pela política creditícia e monetária?

Se o governo e o Estado brasileiro, na figura da autoridade responsável pela política fiscal, não cumprirem sua parte no acordo, principalmente no que tange à reforma da Previdência – se é que há interesse da sociedade nesse acordo –, é possível que, dadas as atuais condições fiscais, a dívida do setor público supere 90% do PIB ainda no fim da década e a taxa de juros necessária para financiar os déficits do setor público volte a um patamar mais elevado. Dessa forma, a dívida pública poderia tornar-se insustentável e, como consequência, haveria uma trajetória de crescimento acelerado da taxa de inflação.

A história da economia brasileira é repleta de ocasiões em que os responsáveis pela gestão de suas políticas econômicas ignoram os alertas dados pela teoria econômica convencional, seja por questões de simples conveniência política, barganhas de grupos de interesse, convicções em teorias alternativas ou uma mistura desses fatores. Talvez seja a hora de quebrarmos essa tradição.

Karlo Marques Junior é professor do Departamento de Economia da Universidade Estadual de Ponta Grossa e do Mestrado em Economia da UEPG. Alejandro C. Garcia Cintado é professor do Departamento de Economia da Universidad Pablo Olavide (Sevilha, Espanha) e do Mestrado em Economia da UEPG.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]