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Cena do filme Trama Fantasma | /Reprodução
Cena do filme Trama Fantasma| Foto: /Reprodução

Talvez uma das experiências mais avassaladoras na vida seja a de ser amado perdidamente por alguém. O amor romântico é uma das coisas que mais me encantam na vida, principalmente na nossa época, em que a recusa do amadurecimento lança o amor romântico no quarto escuro do mito.

O cinema sempre lidou com esse tema como um sucesso seguro, apesar de o tratamento quase sempre ter sido infantil. O amor romântico é uma das experiências mais avassaladoras que alguém pode viver, e não necessariamente te faz bem.

Sabemos que a definição medieval comum era maladie de la pensée (doença do pensamento). Uma forma de obsessão descrita como sempre infeliz, apesar de bela. A pessoa sábia fugiria do pathos amoroso como o Diabo foge da cruz. O conselho vale ainda hoje: olhe pra baixo, fuja, evite, o pathos amoroso é devastador.

O mais comum é pensá-lo na chave “eu a amo perdidamente e o que isso me causa”: penso nela o tempo todo, fico triste quando ela não responde minhas mensagens ou fico nas alturas quando percebo que ela também me ama.

Mas como fica quando “ela me ama perdidamente e o que isso me causa”? O mais fácil, no caso do cinema, é cairmos nas tramas obsessivas de homens e mulheres stalkers querendo matar seus objetos de amor negados. O filme de Paul Thomas Anderson Trama Fantasma, com Daniel Day-Lewis e Vicky Krieps, foge dessa armadilha. Tampouco se trata de uma ode sofisticada ao sadomasoquismo à la “50 Tons”, como pensaram algumas almas pobres de espírito.

Ser amado perdidamente por ela pode ser uma das experiências mais restauradoras da vida

Não. Ser amado perdidamente por ela pode ser uma das experiências mais restauradoras da vida. O risco de sofrimento é inevitável, como toda vez que a vida se mostra nua diante de alguém.

Posso me descobrir capaz de coisas que nunca soube ser graças ao olhar e ao cuidado que ela me revela a cada dia.

O cuidado de uma mulher é mais erótico do que uma lingerie. E, numa idade já madura, quando tendemos a saber com alguma certeza o que somos, o que gostamos e o que detestamos, o “desencaixe” que a beleza causa quando se manifesta nesse cotidiano instituído pode ter um efeito mesmo devastador. Mas, no caso, a tempestade é de beleza, e não de horror.

O grande Dostoiévski (1821-1881) acreditava que a “beleza salvará o mundo”. Mesmo assim, devemos manter junto ao nosso coração a possibilidade de que a beleza também pode causar medo. Principalmente quando não estamos acostumados a tê-la ao nosso lado.

As cenas em que a personagem Alma, representada por Vicky Krieps, olha profundamente apaixonada para Reynolds (estilista inglês famoso e milionário nos anos 50 representado por Daniel Day-Lewis) materializam justamente essa invasão da beleza na vida de alguém.

Reynolds é um homem de enorme sucesso profissional, beirando os 60 anos de idade. Nesse caso, a instituição da vida “no seu devido lugar” tende a ser maior ainda. A rotina do sucesso tem uma gravidade arrasadora sobre os afetos. Alma é uma mulher por volta de 30 anos, corajosa e apaixonada. Duas qualidades que, quando se encontram numa mulher, fazem dela um vulcão.

Do mesmo autor: Uma resposta deslavada (publicado em 14 de maio de 2018)

João Pereira Coutinho: Disforia de gênio: uma introdução (publicado em 26 de maio de 2018)

Ser amado perdidamente por uma mulher é um ato concreto na vida. Tem a consistência de uma pedra. Não é uma abstração. Alma invade a vida de Reynolds, às vezes de modo delicado, às vezes de modo tímido, às vezes de modo (mortalmente) violento e perigoso (esse é o dado que confundiu as almas pobres de espírito que compararam o filme a tramas sadomasoquistas).

Alma, ainda que sofrendo muitas vezes por conta da reatividade de Reynolds à sua presença decidida a cuidar dele, enxerga aquilo que só a dedicação de um amor maduro vê.

Ela vê o que está por trás da escravidão do sucesso, da competência, da irritação com a mediocridade e a banalidade das pessoas à sua volta, da obsessão pelo silêncio, enfim, da solidão que é sua única e verdadeira companheira até ela aparecer em sua vida.

São muito poucos os arroubos românticos no filme. Sua síntese plena está na fala inicial de Alma, quando ela conversa com o médico que aparecerá ao longo da história: segundo ela, Reynolds deu a chance de ela chegar a ser o que sempre quis e fazer da vida como sempre quis e, em troca, ela deu a ele cada pedaço de si mesma, do corpo e da alma.

Reconhece-se o amor aqui como a beleza que transfigura o cotidiano. O que muitos duvidam ser possível.

Alma não é uma louca. O amor verdadeiro de uma mulher é que se tornou incompreensível para nós. E a natureza feminina, quase opaca.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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