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Há algumas décadas multiplicavam-se os artigos e livros destinados a formular os traços do futuro. O imaginário e o fantástico confundiam-se. A linguagem da ficção apresentava-se com ares de criatividade. Tudo para antever como seria o futuro. Enumeram-se os nomes para tais futurismos. Entre erros e acertos, eis que hoje nos vemos facilmente desorientados. As mudanças culturais se tornaram tão profundas que nos surpreendemos até com o que era previsível. As reações se diversificam e se polarizam. Há quem saúde a novidade, em uma espécie de fascínio que parece entorpecer as consciências. Há também os que se refugiam em atitudes fundamentalistas, como se o retorno ao passado preparasse o futuro.

E, é claro, tudo interpela a fé. E ser cristão hoje é, sem dúvida, mais desafiador do que ontem. Havia um contexto mais pronunciado de cristianismo na cultura, nas instituições, na vida familiar, na filosofia, na compreensão da pessoa humana e suas relações, nos costumes etc. Hoje são muito fortes os influxos da competição econômica, da produtividade e resultados, da eficiência, das conquistas, dos triunfos, das superações e por aí vai. Além de maravilhosas mudanças, há também muitos esgotamentos. Também esvaziamentos. Em um ambiente de muitas competições, juntamente com os vitoriosos há também os derrotados. E são frequentes os contrastes entre valores da pós-modernidade e os valores da fé cristã.

Ser cristão hoje é, sem dúvida, mais desafiador do que ontem

Por vezes a conciliação oculta contradições. E quem gosta da coerência terá de assumir opções e escolhas. Surgem hesitações e crises. Na realidade tais vacilações não são de hoje. Já nos tempos de Jesus confrontos assim se apresentavam. É o caso da palavra do Evangelho a ser proclamada neste domingo (Mc 9, 30-37). O assunto abordado por Jesus refere-se ao caminho da cruz. Mas os debates dos discípulos versavam sobre quem seria o maior entre eles. E a reação do Senhor apontava para a solidariedade com os menores, com aqueles “sem relevância”. Isso tudo exigia da parte dos discípulos uma profunda revisão dos seus ideais de vida para si. Tomado o ensinamento de Jesus na sua devida seriedade, também seriam outros os membros do seu círculo de amizades e de partilha.

De fato, para ser cristão e viver a fé nestes tempos tão ricos e criativos, mas também tão contraditórios e excludentes, será preciso muita sabedoria e fortaleza de ânimo. É imenso o bem que se pode fazer com tantos avanços da ciência e da tecnologia. São realizações nascidas do anseio humano por desvendar os mistérios da existência. Mas, se faltar a atenção e afeição pelos fracos, os “sem relevância”, então a conquista será apenas expressão de poder. Quem pode desfrutará. Quem não tem forças perceberá ainda mais o quanto é frágil. Neste caso o forte o fraco se tornam um perigo e ameaça ao outro. A problemática dos refugiados na Europa é o mais recente dentre os exemplos emblemáticos.

É verdade que os caminhos resolutivos para tantos conflitos do nosso tempo empenham muitas demandas e complexidades. Não há caminhos simplistas ou mágicos. Mas não se pode dispensar o lugar e a atenção aos mais fracos nos projetos de qualquer cristão que queira ter em grande apreço as opções inspiradas nos gestos e palavras de Jesus Cristo. E em situações contrastantes os discípulos foram ensinados a combater os pendores de egoísmo. Este é um valor para ontem e para hoje.

Dom José Antonio Peruzzo é arcebispo de Curitiba.
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