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Estátua de Sir Ernest Shackleton, no exterior da sede da Real Sociedade Geográfica, em Londres.
Estátua de Sir Ernest Shackleton, no exterior da sede da Real Sociedade Geográfica, em Londres.| Foto: Wikimedia Commons

Para Santo Agostinho, o homem que nunca viajou é como quem leu apenas um livro na vida. Ora, se é assim, descobrir novas terras seria o equivalente a desvendar uma biblioteca inteira...

Durante o Medievo já se postulava a existência de um continente austral (mais tarde chamado Antártida). Envolto em mistérios, dele cantou Camões: “Do polo fixo, onde inda se não sabe / Que outra terra comece ou mar acabe” (Lusíadas, V,14). Foi somente no fim do século 19, porém, que se reuniram as condições para desbravar esse novo mundo, com o início da Era Heroica das expedições antárticas.

A conquista do Polo Sul era o alvo principal dos exploradores. Em 1909, o irlandês Ernest Shackleton quase alcançou tal proeza, retornando a apenas 180 quilômetros do objetivo. Por fim, em 1911, disputando com o inglês Robert Scott, o norueguês Roald Amundsen alcançou tal façanha, comparável ao descobrimento da América ou mesmo à chegada à Lua em 1969.

A Shackleton restava outra marca inédita: cruzar a pé toda a Antártida, um trajeto de cerca de 2,9 mil quilômetros. As condições eram desafiadoras: ventos de até 300 km/h e temperaturas para lá de -75ºC. Para tal empreendimento, conseguiu alguns mecenas e noticiou o ousado projeto. Apesar do baixo salário oferecido e do extremo perigo da expedição, mais de 5 mil homens se alistaram. No processo seletivo, além do currículo, Shackleton examinava também o caráter e o temperamento dos candidatos. Um dos testes, por exemplo, era cantar uma música de improviso... Só 27 foram recrutados para a denominada “Expedição Imperial Transantártica”.

Em setembro de 1914, o navio Endurance (sugestivamente: “Resistência”) partiu de Plymouth, na Inglaterra, rumo à Antártida, com escalas em Buenos Aires e na Geórgia do Sul. Desta ilha, rumou para o continente gelado, enfrentando 1,5 mil km de águas regurgitantes de icebergs. Em janeiro de 1915, a apenas 140 km do litoral antártico, o navio foi totalmente aprisionado pelo gelo, bem distante de qualquer contato com a civilização. Depois de inúmeras tentativas de se deslindar da geleira, a única esperança seria aguardar o seu derretimento após o inverno.

Shackleton, ou simplesmente “o chefe”, decide esperar. A sua missão agora, não menos heroica, é salvar a tripulação. Forjado pela adversidade, organiza rotina equilibrada e eficaz disciplina, de modo a se sentirem concernidos no bem comum. Para evitar o tédio, promove competições de canto, xadrez e outros jogos. O otimismo do chefe manifesta-se por um misto de alegria, garra e fé, com pitadas de bom humor. Preocupando-se por cada um, elogia as boas atitudes e corrige, sem humilhações, os erros. Quando alguém reclama da comida, desprende-se de sua própria ração diária. Um companheiro o definiu como “um viking com coração de mãe”.

Preocupando-se por cada um, elogia as boas atitudes e corrige, sem humilhações, os erros. Quando alguém reclama da comida, desprende-se de sua própria ração diária.

Por fim, em outubro de 1915, após longa agonia, o Endurance é finalmente esmagado pelo gelo, à maneira de um quebra-nozes. Como bom líder, Shackleton dá o exemplo: é o último a abandonar o navio. A tripulação permanece acampada numa banquisa até conseguir zarpar com três botes salva-vidas rumo à deserta Ilha Elefante. Em seguida, a única possibilidade de sobrevivência consiste em atravessar 1.287 km pela encapelada Passagem de Drake – “o pior mar do mundo” – até a estação baleeira da Geórgia do Sul, para solicitar resgate.

Shackleton se lança, então, num barquinho com mais cinco tripulantes rumo à Geórgia do Sul. Numa travessia praticamente impossível, alcançam o destino após 18 dias de verdadeira odisseia. Mas não há nada ruim que não possa piorar: chegam pelo lado sul, mas a estação baleeira fica ao norte... Mais uma vez, o “chefe” é exemplar: ele e mais dois seguirão o trajeto a pé através das cordilheiras, durante dois dias consecutivos sem dormir, num percurso desafiador até para alpinistas profissionais. Certo é que os três testemunharam depois que sentiam a constante presença de uma quarta pessoa que os acompanhava...

Por fim, em 30 de agosto de 1916, quase dois anos após o início da epopeia, todos os remanescentes na Ilha Elefante foram resgatados com vida. Como Jesus, Shackleton bem poderia declarar: “Dos que me destes, nenhum se perdeu” (Jo 18,9). De fato, Scott era o melhor nas ciências; Amundsen, na velocidade; mas, numa situação desesperadora e sem saída, “ponha-se de joelhos e peça a Deus que seu chefe seja Shackleton”, comentou um cronista.

Há 100 anos, em 5 de janeiro de 1922, a caminho de mais uma expedição antártica, Shackleton embarcou, porém, para a mais sublime das viagens: a eterna. Afinal, cumprira ele a sua missão? Sem dúvida, pois, como proclamou Padre Vieira, “morrer bem é a maior façanha”. Sim, pois mais tarde foi reconhecido como o “maior líder que já veio à terra de Deus” e herói da mais extraordinária aventura.

Felipe de Azevedo Ramos é padre, teólogo, professor e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino (Itália) e medievista com o Diploma Europeu de Estudos Medievais.

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