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Ilustração: Felipe Lima
Ilustração: Felipe Lima| Foto:

A internação forçada de adultos que fazem uso abusivo de drogas é medida que, em geral, não compõe o tratamento, não é necessária, nem efetiva. Sua aplicação parte de algumas suposições equivocadas, que precisam ser enfrentadas.

A primeira premissa a enfrentar é imaginar, possivelmente com boas intenções, que a internação funciona. A Organização Mundial da Saúde aponta que a internação forçada apresenta baixa efetividade e comprovação insuficiente, conclusão idêntica ao Instituto Cochrane. O posicionamento do Conselho Federal de Psicologia é de que “pesquisas recentes no Brasil têm mostrado que a modalidade de internação, seja ela voluntária ou involuntária, tem baixíssima eficácia para o tratamento de usuários dependentes de cocaína e/ou crack”. Você autorizaria a realização de um procedimento médico sem a comprovação científica?

A internação feita fora dos parâmetros é definida pela ONU como crime de tortura

Em segundo lugar, é preciso enfrentar o mito de que a internação involuntária seria em si o tratamento. Para a medicina, nas raríssimas vezes em que a internação é aplicável, constitui somente uma etapa para atingir recovery, ou seja, dar ao paciente condições de continuar com o restante do tratamento, feito fora da internação. Não se pode confundir internação com cura.

A terceira confusão é supor que a medida seria necessária para “tirar a droga do corpo”. Imagina-se que a droga seria a causa única da dependência, quando na realidade a substância é apenas um fator. Comparativamente, muitas pessoas consomem álcool, mas nem todas adotam um padrão abusivo. Não basta tirar o álcool por 10, 30 ou 90 dias para tratar o alcoolismo. É preciso tratar a pessoa, não a droga.

Em seguida, vem o argumento da força de vontade, ou, se preferir, o “e a Cracolândia, como fica?” Novamente, os mitos não se sustentam. O Datafolha repetiu, em 2017, pesquisa que tinha realizado dois anos antes e chegou à mesma conclusão: três quartos das pessoas com “dependência química”, na Cracolândia, desejam tratamento – e a maioria delas buscou por vontade própria.

O levantamento “Estamos de Olho”, realizado no mesmo ano e no mesmo local pelos conselhos regionais de Medicina e Psicologia, Ministério Público e outras tantas entidades, demonstrou que as pessoas da Cracolândia internadas à força não tiveram antes acesso a alternativas de tratamento, nem continuidade após as internações. Interna-se para tirar da rua, e não para tratar.

Leia também: O internamento involuntário como alternativa para tratamento de dependentes (artigo de Marcelo Daudt Von der Heyde, vice-presidente da APPSIQ e preceptor da residência médica em Psiquiatria do Hospital Nossa Senhora da Luz)

O desespero não pode servir de argumento para eleger o tratamento, e há diversas alternativas efetivas à internação, tais como centros de atenção (Caps), Ambulatórios Multiprofissionais de Saúde Mental e outros dispositivos. Onde faltam, é preciso perguntar por que há dinheiro para internar, mas não para os mecanismos não hospitalares, sabidamente mais em conta.

Por fim, a Constituição brasileira não permite internar para punir ou isolar. A posição aqui defendida não exclui por completo a possibilidade de internação como tratamento; todavia, a medida é rara, temporária, exige indicação multidisciplinar e, por definição da lei, pressupõe ter esgotado os mecanismos não hospitalares e o respeito aos direitos fundamentais do paciente. Vale lembrar que a internação feita fora dos parâmetros é definida pela ONU como crime de tortura.

Gabriel Schulman, advogado e doutor em Direito, é professor da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo.

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