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Polícia Militar irá fiscalizar cumprimento do toque de recolher no Paraná. Imagem ilustrativa.
Polícia Militar irá fiscalizar cumprimento do toque de recolher no Paraná. Imagem ilustrativa.| Foto: Gerson Klaina/Tribuna do Paraná

Mario Bunge, em seu Dicionário de filosofia, define liberdade como a “capacidade de pensar ou atuar a despeito de coações externas”. Desde o advento da política na forma em que esta foi constituída no Ocidente, tal capacidade é considerada o principal fundamento da ordem pública: na Antiguidade grega, eram considerados cidadãos os homens capazes de determinar a si mesmos e dispor de tempo e interesse para participar das discussões públicas. Tais discussões tinham por escopo a proteção das liberdades a serem exercidas em suas vidas privadas, bem como a determinação da forma de convívio dos livres no espaço público.

A distinção entre espaço público e privado marca, portanto, duas espécies de liberdade. Esta diferença, nas línguas latinas, causa certa confusão pelo fato de dois fenômenos distintos estarem definidos pela mesma palavra. No inglês, por exemplo, as liberdades políticas são chamadas liberties, enquanto a liberdade individual é definida como freedom. As liberdades políticas são aquelas que permitem e protegem o exercício da liberdade individual face a ameaças advindas de outros indivíduos ou – e especialmente – do Estado.

Tais liberdades foram consagradas nas cartas de direitos, como a Bill of rights inglesa (1689) ou a americana (1791) e incorporadas às Constituições contemporâneas. Estas, ao reconhecerem a soberania popular e a dignidade inata de cada indivíduo, estabelecem proteção às liberdades individuais destes por meio do livre exercício das liberdades políticas. Liberdades como as de expressão, pensamento, religião e culto e locomoção são afirmadas como integrantes da dignidade dos homens e sua observância permite o estabelecimento legítimo da ordem política.

As liberdades políticas podem ser limitadas em situações excepcionais, cuja pertinência requer previsão constitucional e aprovação pela maioria dos indivíduos, diretamente ou por meio de seus representantes. O assentimento popular como limitação do poder do soberano tem uma razão de ser muito clara: as cartas de direitos surgiram exatamente para limitar a ação do Estado e impedir o estabelecimento de tiranias. Ou seja: fora do marco constitucional, todas as violações de tais liberdades podem ser caracterizadas como atos ilegítimos.

As liberdades individuais e políticas, no direito brasileiro, encontram-se arroladas no artigo 5.º da Constituição Federal, enquanto a forma prevista para o estabelecimento de limitações ao exercício de tais direitos encontra-se no título V do mesmo texto. Uma liberdade política fundamental como o direito de livre locomoção dentro do território nacional pode vir a ser limitada apenas por meio da decretação de estado de sítio (definido no artigo 137 da Constituição), que, na ausência de guerra declarada ou ocupação militar estrangeira, só pode advir do malogro de decretação prévia de estado de defesa (descrito no artigo 136). A propositura destas medidas é competência exclusiva da União, na pessoa do presidente da República, e requer aprovação do Congresso Nacional por maioria absoluta para ser efetivada.

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A gravidade do quadro pandêmico atual não autoriza outras autoridades políticas a promoverem limitações desta natureza. Se de fato o estabelecimento de um toque de recolher é necessário, este deve ser implementado estritamente pelas autoridades legitimadas pela Constituição e de acordo com a forma e o rito ali previstos. Fazê-lo por portaria, decreto ou qualquer outro ato jurídico unilateral, sob a desculpa de uma pretensa proteção do bem comum, não passa de ato tirânico que marca grave ruptura da ordem constitucional. Por melhores que sejam as intenções dos responsáveis por este tipo de ato, não se pode esquecer que tiranias, via de regra, surgem a partir de boas intenções que se afirmam em discursos de proteção do bem comum para terminarem na supressão de direitos humanos fundamentais, corroendo assim o fundamento de legitimidade do Estado.

Rafael Pereira de Menezes é bacharel em Direito, mestre e doutor em Filosofia, servidor da Justiça Eleitoral, diretor de pesquisa no Instituto Federalista e professor de Gestão Pública, Ética e Filosofia no Centro Universitário Campos de Andrade.

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