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Retrato de Alessandro Manzoni, por Francesco Hayez.
Retrato de Alessandro Manzoni, por Francesco Hayez.| Foto: Wikimedia Commons

É bastante claro que o ano de 2020 trouxe mudanças bruscas para a vida de todos, não só no Brasil, e que estamos padecendo sofrimentos que não esperávamos de modo algum, com muita ansiedade e medo do futuro. Talvez estejam como eu, há algum tempo angustiado e procurando notícias nas redes sociais e na internet como um viciado em caça níqueis, que acredita que se der só mais uma rodadinha vai ganhar o prêmio que solucionará todos os seus problemas. Então, como um farol que novamente se acendera, lembrei-me de uma obra chamada Os Noivos. O famoso livro de Alessandro Manzoni conta a história de um casal muito pobre que quer se casar - Lorenzo e Lúcia - e que são impedidos de concretizar seu sonho por um nobre pervertido chamado Dom Rodrigo, que cobiçava a moça e havia feito uma aposta de que se casaria com ela. O casal passa por terríveis adversidades - ele, perseguido injustamente pela justiça, sob risco de morte, e ela, raptada por um nobre ainda mais degenerado do que Rodrigo. Tudo vai piorando cada vez mais e eles se vêem impotentes, incapazes de alterar um mínimo que seja seu próprio destino, apesar de já terem lançado mão daquilo que tinham à sua disposição. No entanto, mesmo em meio às contrariedades e circunstâncias caóticas, praticamente insolúveis sob o ponto de vista humano, há um fio condutor que, mesmo de um jeito totalmente tortuoso, arranja tudo para que o casamento aconteça: a Providência.

Mas o que essa história tem a ver conosco? Por mais que possa parecer estranho, ela tem tudo a ver com a nossa situação. Estamos hoje como Lúcia e Lorenzo, submetidos a uma carga enorme de circunstâncias caóticas e indesejadas - quarentena, desemprego, crise sanitária, instabilidade política, arbitrariedades por parte das autoridades, protestos violentos, igrejas fechadas etc. - e, por serem muito pobres, têm pouquíssimo ou nenhum poder de ação para mudar a situação. Isso significa que, em nossas circunstâncias, não devemos fazer nada? Pelo contrário, assim como eles, é preciso, mais do que nunca, fazer aquilo que está ao nosso alcance. Para tanto, precisamos primeiro nos reconhecer, sabermos quem nós somos, qual a nossa posição na realidade, e aí sim seremos capazes de fazer alguma coisa.

Basta, então, fazer o pouco que nos resta e tudo acabará bem? Também não. O livro quer nos mostrar que mais importante ainda é confiar na Providência. E a personagem Lúcia é quem pode mais nos ajudar a entender isso. Desde o começo, ela adota uma atitude mais passiva perante os acontecimentos, e na hora mais escura, quando foi raptada, faz uma promessa com a Virgem Maria para que Deus a livre daquela situação horrível. Por que ela confia mais em Deus e faz menos? Porque ela é mais humilde. Ela é como Maria, no Evangelho, e não como Marta, que se agita e se preocupa com muitas coisas. Ao contrário, o ativismo de Lorenzo, que não é obviamente uma coisa ruim, deixa nele um traço de soberba, e como bem sabemos Deus resiste aos soberbos. Assim, para que confiemos na Providência, Deus, com sua mão bondosa, guia os acontecimentos para o nosso benefício, mas para isso é preciso um esvaziamento, um reconhecimento da nossa pequenez.

O casal Lúcia e Lorenzo nos ensina que o segredo não é puxar para um lado ou para o outro - atividade ou passividade, ação ou contemplação - mas sim buscar uma atitude de complementaridade - atividade e passividade, ação e contemplação. Algo que o lema da Ordem Beneditina resume muito bem: Ora et labora; ou como diria Santo Inácio de Loyola: “Ore como se tudo dependesse de Deus, trabalhe como se tudo dependesse de você".

Podemos ainda nos inspirar em Santa Joana D'Arc (que completou neste ano, em meio à pandemia, cem anos de sua canonização):  uma simples camponesa que vivia em circunstâncias caóticas, que era impotente para mudar a situação, mas confiou na Providência, fez o que estava ao seu alcance e mudou a história de seu país e da humanidade.

Concretamente, em meio às nossas circunstâncias, em que estamos acossados por todos os lados, o que podemos fazer? Baixar os olhos para nós mesmos, perceber quem somos, em que posição estamos, confiar em Deus e meter a mão na massa. É pai ou mãe de família? Sustente os filhos, eduque-os da melhor forma possível, ame o próximo, reze e confie em Deus. Solteiro? Aproveite o incontável tempo livre que possui para estudar, assuma todas as suas obrigações, deixe de ser um peso para os outros, reze e confie em Deus. Padre? Celebre sua Missa, faça a liturgia das horas, atenda confissões, reze e confie em Deus. E por aí vai.

Não adianta passar horas zapeando as redes sociais, nem levantar hashtags, tampouco postar ofensas em perfis de autoridades, esbravejar, irritar-se, ficar ansioso. Tudo isso é cegueira, é soberba, porque estamos achando que temos um poder de mudar a realidade que na verdade não temos. E a verdade é que a maioria de nós somos “zé manés”, desconhecidos e sem recursos. Somos Lúcia e Lorenzo. Somos os civis que foram deixados para trás enquanto soldados e generais se digladiam no campo de batalha. Não nos resta outra coisa senão aprender a lição que Alessandro Manzoni quis nos ensinar com o livro Os Noivos: aceitar as circunstâncias, fazer o melhor com o que está ao nosso alcance e confiar em Deus.

Mateus Campos Felipe é bacharel em direito pela UFPR e servidor público federal.

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