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Com ou sem palhaços, picadeiros, leões enjaulados e trapezistas, o circo é a grande metáfora deste pedaço da his­­tória da humanidade

A frase em italiano tem várias traduções e versões, com ou sem expletivos, palavrões e ênfases. Divulgada na terça-feira, quatro dias depois do naufrágio do Costa Concordia, tomou conta da twittersfera, blogosfera, cosmoesfera do mundo digital e transcende a tragédia marítima.

O diálogo entre o comandante Gregorio de Falco, da Capitania de Livorno, e o capitão do navio-balneário, Francesco Schettino, que abandonou o seu barco antes de todos terem saído fez de um herói, do outro, vilão, e converteu o multisecular Código Marítimo no Estatuto Universal do Cumprimento do Dever.

Na Itália emasculada pelo reinado obsceno de Silvio Berlusconi e num mundo devastado pela incúria do grupo do ex-presidente George W. Bush, que jogou a economia mundial no abismo da desregulação e na escuridão do "salve-se quem puder", a determinação, clareza e competência de Falco funcionam como farol, modelo, inspiração.

A globalização iniciada há cinco séculos pelo português Fernão de Magalhães a serviço da coroa espanhola nos empurrou para um arquipélago-mercado onde é possível adquirir qualquer tipo de mercadoria e prazer, exceto as referências morais.

O vale-tudo hoje imperante em todos os quadrantes e estamentos liquidou as noções de obrigação, compromisso e responsabilidade – públicas e sociais. "Danem-se os outros" é o que parece dizer o capitão Schettino que mesmo depois do primeiro choque continuou tomando o seu drinque com a bela moldava. "Somos escravos das leis e da solidariedade", responde Falco.

O trágico desfecho de um inocente cruzeiro marítimo de férias na noite de uma sexta-feira 13 não pode servir como reforço de superstições nem o fato de ter acontecido menos de duas semanas depois do início do ano pode ser estendido às próximas 50. A fulanização do episódio é incontornável, inevitável e talvez até necessária para atender à compulsão do espetáculo que hoje comanda a sociedade humana. A verdadeira tragédia palpita nos bastidores quando se revela que a perigosa manobra de aproximação do enorme navio da costa fazia parte do script para promover um adeusinho dos passageiros aos habitantes dos vilarejos.

Tudo é circo, inclusive o turismo. Com ou sem palhaços, picadeiros, leões enjaulados e trapezistas, o circo é a grande metáfora deste pedaço da história da humanidade.

Nosso circo tem legiões de Schettinos e poucos de Falcos. Nossos executivos abandonam os munícipes justo quando são mais necessários, nossos magistrados revoltam-se quando alguém – especialmente uma mulher – cobra transparência e decência. Cumprir o dever deixou de ser obrigatório, é facultativo. Nossos legisladores ignoram seus deveres aferrados às regalias. Plenários vazios na maior parte da semana atestam o completo desconhecimento dos códigos básicos de civismo e civilidade.

Giuseppe Verdi comporia uma ópera com personagens como Schettino e de Falco. Aqui talvez sejam personagens de um samba-enredo, telenovela ou figurantes de um reality-show.

À espera do carnaval navegamos presunçosos certos de que tudo dará certo. Apesar dos arrecifes submersos e correntes traiçoeiras, somos infalíveis. Segundo a lorota oficial, fomos descobertos por acaso e assim nos tornamos parceiros eternos da casualidade, dos ventos favoráveis e bons fluidos.

Hora de verificar os mapas, mudar o rumo. Hora de despachar os Schettinos para os tribunais e injetar nos tribunais o espírito de Falco.

Alberto Dines é jornalista.

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