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Uma autoridade pode lutar para ampliar o poder e as prerrogativas de seu posto com habilidade e engenho. Defender as prerrogativas de outras autoridades, em outro ramo do governo, só se faz com base em princípios. Antonin Scalia, juiz da Suprema Corte norte-americana falecido dias atrás, passou seus anos na aristocracia judicial americana defendendo a democracia representativa. Ele queria que as cortes tivessem um papel limitado e de apoio, interpretando textos produzidos pelos representantes do povo. Se novos significados são necessários – como frequentemente o são, em um país multifacetado e em constante mudança –, é o povo que precisa oferecê-los.

“Você acha que o povo americano teria ratificado” a Constituição, questionou Scalia, se esse mesmo povo soubesse que “o significado desse documento seria o que quer que uma maioria na Suprema Corte dissesse que é?”. Em temas como o aborto, ele afirmou que os juízes “votam com base no que sentem”, o que equivale à “destruição do nosso sistema democrático”.

O mais brilhante dos juristas do seu tempo, queria que fossem os representantes do povo a mandar

A reação dos juízes que têm papel de destaque no governo americano foi, e ainda é, negativa – o que não surpreende. Juízes de tendência mais à esquerda têm interesse em fazer das suas intuições morais particulares a lei para toda a nação, sem o inconveniente de ter de convencer seus compatriotas. Se o processo de tomada de decisão judicial envolve a interpretação de padrões que evoluem, os intérpretes ganham uma enorme influência. Os progressistas normalmente gostam dessa abordagem porque ela garante resultados a seu gosto. Mas, como teoria política, não há nada de liberal nisso porque esse sistema dá enorme poder político para uma pequena elite que age em proveito próprio.

Mais uma vez Scalia: “O juiz não originalista [ou seja, não apegado à origem do texto legal] que decide o que a Constituição moderna deveria significar – talvez recorrendo a seus princípios favoritos de filosofia moral, ou talvez apenas colocando em prática suas próprias análises brilhantes a respeito daquilo que os tempos pedem – foge à aplicação de qualquer critério claro, pelo que podemos concluir que ele não passa de um charlatão”.

Ao expor esse esquema, Scalia, o mais devoto dos católicos, foi bem protestante em sua colocação. Ele via os defensores de uma “Constituição viva” da mesma forma como Lutero via o clero católico: uma classe que mantinha seu poder por meio da mistificação e da alegação de que só ele podia interpretar os textos sagrados. Scalia defendeu o significado claro e simples dos textos, disponível às pessoas comuns. Um sacerdócio de cidadãos. E Scalia chegou a disparar um tipo de reforma, inspirando uma geração de originalistas que se tornou bem influente na academia e nos tribunais.

A pergunta “quem julga?” também é a pergunta “quem manda?” Scalia, o mais brilhante dos juristas do seu tempo, queria que fossem os representantes do povo a mandar. E como esses legisladores estão respondendo a uma vacância na Suprema Corte tão significativa quanto a ocorrida com a morte de Scalia? Nada bem.

No significado puro e simples das palavras da Constituição, designar juízes da Suprema Corte é uma prerrogativa presidencial. Alexander Hamilton, no número 76 dos Federalist Papers, reafirma o amplo poder presidencial no exercício dessa prerrogativa e define critérios bem específicos para que o Senado possa rejeitar indicados.

Tudo isso agora vale muito pouco. O sistema de nomeação está profundamente danificado. E, sim, foram os democratas que iniciaram o desmonte. A indicação de Robert Bork para a Suprema Corte na era Reagan ditou o padrão – em indicações ideologicamente decisivas – de verdadeiras guerras pela nomeação, envolvendo pesquisa de opositores e difamação pública. Até onde posso ver, isso não tem mais volta.

A tarefa de Barack Obama fica ainda mais complicada pelas relações terrivelmente más com o Congresso. A maioria dos líderes republicanos pode contar – e o faz – histórias de desprezo e tratamento desdenhoso por parte do presidente. Ele não tem mais nenhum crédito de boa vontade para usar.

E a pressão política sobre o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, vai apenas em uma direção: adiar e adiar, sem nem mesmo uma votação no Comitê Judiciário. Se McConnell permitir que, sob seus olhos, haja uma mudança decisiva na Suprema Corte, os conservadores vão se perguntar qual é a vantagem, afinal, de ter uma maioria no Senado. A revolta contra McConnell seria generalizada, incluindo muitos dos pré-candidatos republicanos à presidência.

Obama vai tentar mudar essa dinâmica com um indicado de grande apelo ou qualificações extraordinárias. Poderia o líder do Comitê Judiciário, Chuck Grassley, de Iowa, barrar alguém que viesse do mesmo estado? O Senado poderia rejeitar na Suprema Corte alguém que já tivesse aprovado para uma corte de instância inferior por 97 a zero?

Não importa. Em parte porque a Suprema Corte assumiu tal importância na vida do país que uma mudança decisiva em sua composição ideológica seria um evento de enormes consequências políticas. E ninguém vai trazer os Federalist Papers para essa briga de foice.

Michael Gerson é analista politico e colunista do Washington Post , onde este texto foi originalmente publicado.
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