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| Foto: Steve Pastor/Wikimedia Commons

“Cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares.” (Italo Calvino, As cidades invisíveis)

Como todos sabem, um termostato é um dispositivo concebido para regular a temperatura de um determinado sistema, mantendo-a sempre constante. Para tanto, são definidos os limites térmicos inferior e superior, circunscrevendo toda variação de temperatura a esse intervalo preestabelecido. E, muito embora este artigo não seja sobre termostatos, mas sobre diversidade cultural, a lógica operacional do dispositivo nos servirá de metáfora.

O conceito de diversidade hoje em voga nos meios de comunicação, nas artes, na academia e na publicidade lembra muito um termostato. Ele mantém a variação de “temperatura” cultural dentro de parâmetros muito bem definidos. Seus operadores são os autoproclamados “progressistas”, pessoas que não cansam de ostentar seu zelo pela diversidade, conquanto não ultrapasse os rígidos limites por elas estabelecidos. Parafraseando George Orwell, pode-se dizer que, na fazenda contemporânea, todos os bichos são diferentes, mas alguns (os que ajustam o termostato) são mais diferentes que outros.

O anúncio de um programa da maior emissora do país ilustra o que quero dizer. Tendo por tema “o crescimento dos movimentos feministas no século 21”, a chamada fala num “debate entre três mulheres feministas de idades, cores e classes diferentes”. Curioso debate, em que as partes podem diferir quanto à idade, classe e cor (e, talvez, orientação sexual, jeito de se vestir, time de futebol, gosto musical etc.), mas não quanto ao conteúdo do assunto em pauta. O feminismo é a temperatura média desejada. Admite-se graus diferentes de feminismo, jamais o não feminismo.

O multiculturalista vai ao mercado das diferenças culturais como quem vai ao fast food

Para os organizadores do “debate” (que é, em verdade, propaganda ideológica), a diversidade é cosmética e puramente formal. Celebram-se diferenças acidentais e de superfície apenas para melhor promover a homogeneidade total de opinião. Como escreveu sobre os seus pares de esquerda o jornalista americano Nicholas Kristof, em maio de 2016, no New York Times: “Aceitamos muito bem as pessoas que não se parecem conosco, com a condição de que pensem como nós”.

Aquela valorização de diferenças culturais superficiais é marca registrada do paradigma multiculturalista. Trata-se da visão de mundo típica da elite cosmopolita e globalizada dos grandes centros urbanos do Ocidente, que, acima de particularidades étnicas, linguísticas e de caráter nacional, forma um grupo culturalmente homogêneo. Acostumados a viajar para os mais diversos cantos do planeta, a turismo ou negócios, seus integrantes veem-se como consumidores de exotismos e especificidades culturais. Integram uma espécie de metacultura universalista pairando acima das culturas particulares que dizem amar e respeitar, mas com as quais mantêm uma relação hierárquica, condescendente e de mão única. Todo mundo tem cultura, menos o multiculturalista ele próprio, que acredita ter transcendido suas condicionantes culturais rumo a uma espécie de panóptico transcultural de onde tudo vê sem jamais ser visto. O multiculturalista é, precisamente, aquele que ajusta o termostato.

Curiosamente, uma das críticas mais agudas ao modelo multiculturalista é da lavra de um autor de extrema-esquerda, o escritor e poeta anarquista Peter Lamborn Wilson (também conhecido pelo pseudônimo Hakim Bey). Em artigo intitulado “Contra o multiculturalismo”, ataca vigorosamente a húbris inerente ao modelo, pelo qual as “muitas” culturas pressupostas no prefixo “multi-” são medidas em função de uma cultura “universal” padrão. Embora tolere um tanto de diversidade e experimente certa curiosidade romântica por costumes exóticos, essa cultura padrão (a Cultura, com C maiúsculo) é concebida como o centro em torno do qual gravita uma profusão de culturas periféricas. Cada uma delas tem algo a oferecer, alguma particularidade étnica da qual se orgulhar, satisfazendo assim a paixão museológica e altamente seletiva dos multiculturalistas. Nas palavras de Lamborn Wilson: “Portanto, o multiculturalismo parece propor ao mesmo tempo o particularismo e o universalismo – uma totalidade, de fato. Toda totalidade implica totalitarismo, mas, nesse caso, o todo aparece com um rosto amigável, como um grande parque temático em que cada ‘caso especial’ pode ser eternamente reproduzido”.

Leia também: O terrorismo e os valores ocidentais (editorial de 19 de agosto de 2017)

Do mesmo autor: A Jaque resiste! (11 de junho de 2017)

Com efeito, o multiculturalista vai ao mercado das diferenças culturais como quem vai ao fast food. Tem uma manta massai cobrindo o sofá da sala, lembrança de sua excursão filantrópica ao Quênia. A zarabatana indígena, adquirida naquele hotel ecologicamente sustentável em Manaus, está pendurada na parede do escritório. E o hijab islâmico que trouxe para a mulher, comprado por ocasião daquela viagem executiva ao Catar, segue guardado no closet. Não há por que duvidar da sinceridade e das boas intenções do nosso amigo multiculturalista e progressista. O problema é que essas sinceridade e boas intenções são inseparáveis daquela húbris de que fala Lamborn Wilson, o que torna leviana a relação do multiculturalista com a diferença cultural. Sim, nosso amigo ama profundamente a cultura massai, mas não aquela parte em que as moças são circuncidadas aos 11 anos e vendidas ao marido em troca de cabeças de gado; tem grande admiração pelos índios da Amazônia, mas ficou um tanto chocado ao descobrir que não são veganos e como lidam com os animais; acha muito elegante o hijab, símbolo de seu repúdio à islamofobia, mas sabe que sua mulher pediria o divórcio caso a obrigasse a vesti-lo. Quer, em suma, consumir todas essas culturas, mas sem cebola e com o dobro de queijo.

Ora, é muito fácil tolerar diferenças culturais que não nos sejam muito significativas, que não representem desafio real às nossas opiniões mais caras ou ameaça ao nosso estilo de vida. É simples quando julgamos poder selecionar os elementos que nos agradam, descartando todos os demais. Todo progressista pode facilmente alegar seu amor pela cultura massai em abstrato. Isso conta pontos no seu meio social. O problema começa diante de um massai de carne e osso, que talvez não seja favorável ao aborto, à legalização das drogas ou a Barack Obama. Assim, também, os progressistas que organizaram o “debate” sobre o feminismo no século 21 acham lindo diferenças de idade, cor e classe social. Gostam de adornar o estúdio com elas. O problema começa com as diferenças de opinião. E para isso serve o termostato da diversidade: para abortá-las antes do nascimento. Vai que surge, para estragar o clima, uma mulher não feminista, evangélica, crítica ao Pabllo Vittar e – esconjuro, pé de pato, mangalô três vezes! – eleitora do Bolsonaro...

Flavio Gordon, doutor em Antropologia, escritor e tradutor, é autor de “A Corrupção da Inteligência: Intelectuais e poder no Brasil”.
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