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Terras indígenas e procedimentos demarcatórios
| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

Em 22 de fevereiro de 2019, o pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu pela existência de repercussão geral no Recurso Extraordinário 1.017.365, onde se discute a reintegração, à Fundação Amparo Tecnológico ao Meio-ambiente (Fatma), de posse sobre a terra indígena Ibirama-La Klãnõ, assim declarada no curso de procedimento demarcatório, e que contempla as matrizes indígenas Xokléng, Guaraní e Kaingang. O procedimento encontra-se sob discussão no Supremo Tribunal Federal, na Ação Cível Originária 1.100, ajuizada no ano de 2007.

A questão da demarcação de terras ocupadas por povos originários tem sido alvo de múltiplas discussões no STF. Em 2009, foi objeto de amplo debate no julgamento da PET 3.388/RR. Nesse processo, discutiu-se a constitucionalidade do procedimento demarcatório de terra localizada em área conhecida como Raposa Serra do Sol, procedimento que resultou na Portaria 534/05, do Ministério da Justiça, posteriormente homologada por decreto do presidente da República. Nesse julgamento, declarou-se o direito dos indígenas à posse e usufruto sobre a terra, reconhecendo-se a constitucionalidade da demarcação sob a modalidade contínua. A demarcação contínua opõe-se à demarcação por ilhas ou bolsões, na qual se admite a presença de não índios dentre os povos tradicionais.

A área que corresponde à hoje declarada terra indígena Raposa Serra do Sol, localizada ao norte do Estado de Roraima, totaliza cerca de 1.747.464 hectares. Localiza-se em região de fronteira, fazendo divisa com a Venezuela e com a Guiana. Antes de concluído o julgamento da PET 3.388, encontravam-se na região, majoritariamente, além de indígenas, arrozeiros. Após concluído o julgamento, determinou-se a retirada dos não índios da localidade. No julgamento, confirmou-se a legitimidade do procedimento administrativo que concluiu ser, a área em questão, de ocupação tradicional, contemplando as etnias Taulipáng, Makuxí, Ingarikó e Wapixana.

A questão da demarcação de terras ocupadas por povos originários tem sido alvo de múltiplas discussões no STF

A Constituição Federal estabelece que as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas pertencem à União, reservando aos membros de povos nela localizados o direito à sua posse e usufruto. Estabelece, também, que eventuais títulos de propriedade sobre referidas terras serão nulos, caso a área seja reconhecida como de ocupação tradicional. Ou seja, não há título de propriedade a ser oposto em face da ocupação tradicional assim declarada. Essa declaração depende de procedimento administrativo que, até onde se tem notícia, é conduzido no âmbito do Ministério da Agricultura.

O caso da terra indígena Raposa Serra do Sol, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, é peculiar por terem sido debatidos, ali, diferentes interesses. Interesses de Estado, no que diz respeito à soberania e à segurança nacional. Interesses dos povos tradicionais, em termos de reprodução física e cultural, bem como preservação de usos, costumes e tradições. Interesses dos arrozeiros (agricultores) da região em preservarem suas práticas. Trata-se, bem da verdade, de valores que, densificados em princípios, informaram razões para decidir: soberania nacional, segurança pública, livre iniciativa, proteção de povos tradicionais.

Como observado, a terra indígena Raposa Serra do Sol localiza-se em região de fronteira. No Brasil, 11 estados da federação fazem divisa com nove países da América do Sul: Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Esses 11 estados concentram mais de 760 áreas indígenas que se encontram, atualmente, em diferentes fases de demarcação. O Censo-IBGE de 2010 aponta que: a) há, no Brasil, nada menos que 274 línguas indígenas faladas; b) 17,5% dos indígenas não falam português; e, c) existem 305 etnias diferentes, espalhadas pelo país.

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Ou seja, a demarcação de terras ocupadas por povos originários é, sem dúvidas, relevante. Por esse motivo, cada procedimento demarcatório merece ser visto como único.

Argumenta-se que muitos indígenas não dependem mais da terra somente para sobreviver, ou para reproduzir tradições e costumes, ocupando-a com o objetivo de explorá-la economicamente. Nesse respeito, é importante observar que singularidades não devem ser generalizadas, sobretudo considerando a questão, não menos complexa, da exploração de mão de obra indígena para trabalhos no campo, resultando em um processo de deculturação forçada. As situações fáticas, aqui, são inúmeras, em todo o país. De outro lado, cabe lembrar que, sendo as terras tradicionalmente ocupadas de titularidade da União, assim como os bens nela localizados, sua exploração para fins econômicos depende de autorização do Congresso Nacional. A exploração de tais terras, portanto, cobra organização econômica dirigida a este fim e devidamente autorizada pelo poder público federal.

Como resultado de tantas discussões, foram fixadas, no julgamento da mencionada PET 3.388, dezenove medidas institucionais (ou, salvaguardas institucionais), que o Supremo julgou serem relevantes a futuros procedimentos administrativos de demarcação. As 19 medidas foram chanceladas pela presidência da República, por meio de Aprovo presidencial sobre o Parecer GMF-05-AGU, que adotou como razões de decidir o Parecer 0001/2017-CGU-AGU, anterior. Logo, e ao menos a priori, as 19 medidas institucionais destinam-se a serem diretrizes obrigatórias em futuros procedimentos demarcatórios, embora não vinculem casos concretos discutidos judicialmente. Tais diretrizes são informadas pelos princípios anteriormente mencionados. Mas têm sido alvo de críticas. Membros do Ministério Público Federal e do Congresso Nacional têm discutido a juridicidade de referido parecer.

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A questão dos procedimentos demarcatórios, de fato, é objeto de divergências. Calha lembrar que, meses antes do mencionado parecer da AGU, a Portaria 68/17, do Ministério da Justiça, que criou grupo de trabalho e instituiu diretrizes para futuros procedimentos demarcatórios, foi tão criticada que, um dia depois, foi revogada e, em seguida, substituída por portaria instituinte apenas de referido grupo de trabalho.

A solução para a questão da demarcação de terras ocupadas por povos originários pressupõe a oitiva de múltiplas partes interessadas – indígenas e não indígenas. Um primeiro passo é identificar se a terra está sendo explorada para fins econômicos ou se vem sendo utilizada como meio de preservação de usos, costumes e tradições. O STF está tendo a oportunidade de fazer um esforço nesse sentido, a exemplo da audiência pública que foi realizada, em 29 de abril, no processo da ACO 1.100, citada no início deste artigo. Ao final, será preciso concluir pela melhor composição dentre os objetivos constitucionais de proteção da cultura e história brasileiras, os direitos originários atribuídos, pela Constituição, aos povos tradicionais, dentre outros princípios constitucionais relevantes, particularizados de acordo com o singular tema em questão.

Ana Lucia Pretto Pereira é mestre e doutora em Direito Constitucional, com estágio-doutoral em Teoria do Direito e pós-doutorado em Processo Constitucional. Professora e Líder do Centro de Estudos Políticos e Constitucionais (Cepec), na Universidade Católica de Brasília.

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