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É imperioso repetir à exaustão que não há legalidade sem obediência à moralidade ou sem a publicidade dos atos e contratos; que são ilegais os atos praticados para beneficiar amigos e parentes

Muito embora receba elogios, a Constituição brasileira é também objeto de severas críticas. Uma das mais consistentes é a de que ela teria características de um documento barroco. Tal como a literatura desse estilo, o texto constitucional brasileiro é extenso (250 artigos na parte principal, mais 97 nas disposições transitórias) e repetitivo (a expressão "serviço público" aparece dez vezes; já "meio ambiente" repete-se 18 vezes) – isso à parte de dispositivos circunstanciais (o artigo 242 fixa a sede do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro). Além do mais, ela seria supérflua: veja-se o artigo 37, ao consignar que a administração pública deve obedecer à legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (quando poderia prever só a legalidade, inferindo-se dela os demais princípios). Assim, a principal característica da Constituição estaria na exuberância de elementos que não se conjugam entre si, com demasiado culto à forma. Tudo isso com a intenção de deixar o leitor maravilhado diante da opulência da obra.

É bem verdade que essa crítica não é de todo improcedente. Afinal, são centenas de artigos, as repetições existem e o texto trata de assuntos que não dizem respeito ao que se espera de uma Constituição. Mas essa é a Constituição brasileira, a qual reflete algumas das características do seu povo. O texto é o retrato do tempo em que vive a Nação e das exigências que o povo estabeleceu para o exercício dos poderes constituídos. Ela é a fotografia que revela a intensidade da beleza do povo brasileiro, a sua profusão de detalhes, bem como mostra cruamente algumas de suas mazelas e infortúnios. A fartura antes decorre de exigências da vida prática do que propriamente de cuidados literários.

Assim, não é devido a um acaso que o artigo 37 da Constituição enumera cinco princípios a ser obedecidos em todas as atividades administrativas do Estado, ao invés de condensá-los em um só. Isso se deu por que é necessário ser supérfluo. É imperioso repetir à exaustão que não há legalidade sem obediência à moralidade ou sem a publicidade dos atos e contratos; que são ilegais os atos personalíssimos, praticados para beneficiar amigos e parentes; que a ineficiência é vício equivalente à ilegalidade. São deveres impostos com clareza a todos os agentes públicos, pois não há meio-termos. Logo, do que estamos falando quando falamos da Constituição brasileira?

Estamos falando de limitação do poder e supremacia da lei. Estamos falando de um governo de leis, não de um governo de homens. Estamos falando que os atos praticados por todos e qualquer um dos membros dos poderes constituídos não podem ser secretos nem se desviar da moralidade. Estamos falando que o Estado brasileiro não se contenta com quaisquer comportamentos dos detentores do poder, mas prestigia só e tão-somente aqueles que atendam à legalidade, à impessoalidade, à moralidade, à publicidade e à eficiência. Estamos falando que, caso o servidor público – qualquer um, desde o funcionário da humilde repartição pública até o Presidente da República – desrespeite tais preceitos, terá violado a Constituição e deverá ser submetido ao devido processo legal para receber a resposta que o ordenamento reserva àquele que pratica atos ilícitos.

Porém, e a toda evidência, nem mesmo o legislador constituinte imaginou que isto se instalaria de imediato, num big-bang existencial – como se antes nada houvesse, nem mesmo o tempo. A legalidade, a publicidade e a moralidade não caem do céu nem dão em árvores. Se é fato que a Constituição brasileira foi promulgada em outubro de 1988, é igualmente verdadeiro que a História constrói-se aos poucos, sem linearidade específica, mas numa cadência inconstante. Pois este ritmo, felizmente e a duras penas, é às vezes acelerado – seja por meio de movimentos sociais, seja por meio da imprensa. Nesses momentos difíceis, a Constituição pulsa mais forte e todos passamos a vivê-la mais intensamente. O resultado esperado é o de que, em breve, todos nós saibamos do que estamos falando quando falamos da Constituição brasileira.

Egon Bockmann Moreira, advogado, doutor em Direito e professor da Faculdade de Direito da UFPR.

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