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O presidente Lula não gostou de ver a agenda do PAC atropelada pela agenda gritada pela sociedade depois do martírio do menino João Hélio. Estava tudo programado para que, em seguida à eleição do presidente da Câmara, fosse acionado o rolo compressor destinado a aprovar os itens legislativos do Programa Acelerado de Crescimento e mostrar que o governo, eleito em 29 de outubro, começou, enfim, a operar.

O PAC foi concebido como um totem, ícone, símbolo sagrado para o sucesso do segundo mandato, bandeira capaz de criar condições até para um terceiro. Os estrategistas palacianos, porém, não contavam com a tragédia nem com o clamor ecoado pela mídia.

Unicamente por isso, um líder popular com o talento e a sensibilidade de Lula da Silva foi obrigado a assumir uma atitude olímpica, distanciar-se e até confrontar os ímpetos reformadores exigidos pela sociedade. Seu veto peremptório, antes mesmo de materializar-se qualquer proposta para alterar a maioridade penal, colocou-o automaticamente na contramão da grande corrente de solidariedade que se armou no país.

Involuntariamente, Lula passou para o outro lado, esquecido de que o repertório de medidas para tornar mais rigorosa a administração da justiça comporta dúzias de medidas alternativas. Aferrou-se a antigos preconceitos, esquecido de que com um mínimo de criatividade pode-se diminuir a maioridade penal sem jogar todos os menores infratores nos braços do crime organizado.

A barbárie foi demasiada, o nível de horror foi ao extremo, a imprensa conseguiu perseverar por alguns dias a mais e o coro de mulheres revoltadas do país inteiro acabou por empurrar os parlamentares recém-empossados a votar algumas medidas de urgência. Em apenas dois dias foram aprovadas por unanimidade cinco medidas sem qualquer respaldo ou incentivo do Executivo.

Se o clima de horror e repúdio manter-se além do carnaval, seguir-se-ão outras votações envolvendo projetos até mais polêmicos e severos. O presidente do Senado, Renan Calheiros, fiel escudeiro do Executivo e pessoalmente contrário à redução da maioridade penal (foi ministro da Justiça na era FHC) reconheceu na véspera do feriadão que a mudança é inevitável. "A pressão é enorme", desculpou-se.

Agarrado a velhos tabus, o presidente Lula assiste ao adiamento da consagração do seu totem. Na esvaziada Brasília, quase cem anos depois dos ensaios de Sigmund Freud que aproximaram a psicanálise da antropologia social, assistimos ao vivo e em cores sombrias a uma exibição simplificada de "Totem e Tabu". Os mecanismos de estímulo e repressão das sociedades primitivas estão sendo reavivados através de um elenco de amadores, incapaz de perceber a que ponto deixou-se enredar por um impasse tão tosco.

Mesmo com o pé no acelerador em busca do imperioso crescimento, o governo não poderia passar a impressão de que marcha na direção contrária da sociedade num momento tão delicado e doloroso. Os naturais cuidados com a adoção apressada de leis, estatutos e artigos capazes de subverter cláusulas pétreas da Carta Magna não deveriam colocar o partido do governo e alguns de seus aliados sob a suspeita de que defendem a impunidade.

A ligeira alteração num cronograma atrasado quatro meses poderia ser perfeitamente assimilada e até revertida em favor do governo se este empunhasse a batuta do coral uníssono e unânime que tomou conta do país. Os sinais de ceticismo inadvertidamente emitidos pelo Planalto e seus porta-vozes alimentam mal-entendidos.

Quando o ministro Márcio Thomás Bastos, celebrado criminalista, ao invés de assumir explicitamente o seu papel de expert contenta-se apenas em produzir um artigo num jornal, evidencia-se que abdicou do seu papel de expert receoso de que suas sábias recomendações possam gerar mais atrasos nas votações do PAC.

Nestas circunstâncias não há como negar as evidências de um descompasso entre as prioridades do governo e as prioridades dos governados. O crescimento acelerado é um totem para todos, aspiração nacional, não pode ser confrontado pelos tabus daqueles cuja agenda só comporta um item.

Alberto Dines é jornalista.

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