• Carregando...
Bandeiras dispostas para a 54ª Cúpula do Mercosul, em Santa Fé (Argentina).
Bandeiras dispostas para a 54ª Cúpula do Mercosul, em Santa Fé (Argentina).| Foto: Isac Nobrega/Presidência da República

Embora a trazer notáveis avanços, árduos têm sido os caminhos da integração regional e da construção de seus blocos econômicos. No caso europeu, por exemplo, em 1987, na comemoração dos 30 anos do Tratado de Roma, as então Comunidades Europeias viviam grande crise, em plena era de incerteza, com o famoso muro por cair, mais ainda lá, a separar, segregar e desunir. Também inquietava o alargamento do bloco – Grécia, em 1981; e Portugal e Espanha, em 1986 –, com os mediterrâneos em cotejo com a Europa pálida do norte, ressuscitando fantasmas e recordando o estigma hamletiano da condição extracomunitária. A agravar o quadro, somavam-se penúria econômica e reclamos de relações mal resolvidas, a exemplo da ancestral oposição franco-britânica, em Brexit latente que sempre pareceu existir.

Não bastassem esses desacertos medulares, havia ainda o terrorismo interno, não de estrangeiros, mas de europeus contra europeus, explosões, morticínios e assassinatos a comprometer a ideia matriz de fortaleza Europa. Eram as anacrônicas células de ideologias furiosas, nas duas mãos e em infeliz destempo, até hoje a ecoar em suas siglas assustadoras: IRA, Baader-Meinhoff, Brigadas Vermelhas, Prima Linea, P2, Euskadi, ETA.

Em muitas das críticas que se fazem à integração, há no mais das vezes o traço comum de carência de informação técnica ou de expectativas exageradas em relação ao que seja ou o que possa fazer um bloco econômico

Era preciso mudar. E foi o que ocorreu, com vontade política e consciência de haver problemas apesar de estar-se em bloco econômico e não por causa disso. Também a revolução que a integração promovia falava mais alto e obrigava a aprofundar e consolidar conquistas. E foi o que se fez, com o Ato Único Europeu de 1987, já rumo à União Europeia como hoje a concebemos. Passava-se de fase viciosa à fase virtuosa, com a positiva irradiação econômica entre vizinhos, o spill over, ou o derramamento de vantagens, no dizer dos economistas, com livre circulação de bens, de pessoas, de capitais e de serviços, e mais, em outra terminologia didática, pelo acquis communautaire; vale dizer, pelas conquistas e progressos coletivos, com distribuição de aportes materiais e imateriais, valores e comportamentos, indicativos de evidente desenvolvimento social, na convicção de que os povos evoluem, e, normalmente, não voltam a comer com as mãos.

São também dessa época os esforços para a criação do Mercosul, o que ocorreria em 26 de março de 1991, por tratado entre os países platinos e o Brasil. De cepa diversa do modelo europeu, no entanto, a integração sul-americana propunha a construção programática de um mercado comum distinto, não de imediato, a experimentar etapas, com prudência e nos limites do possível. Com vistas a acomodar as assimetrias, bem como o presidencialismo imperial das partes, a inteligência funcional do Tratado de Assunção foi notável, sem carimbos, cartórios, mercocratas e organogramas, com flexibilidade, realismo e pragmatismo. Em apenas 24 artigos resolvia-se em boa medida o que o Tratado de Roma, na Europa, havia proposto resolver em 350 artigos. Enquanto lá se adotava a forma supranacional, a grande diferença, com supremacia de leis comunitárias sobre leis nacionais, aqui se acomodava a sacralidade da soberania com a adoção do sistema intergovernamental, baseado nas decisões tomadas por consenso e por unanimidade, sem poderes acima dos Estados.

Ao comemorarmos 30 anos de vigência ininterrupta do Tratado de Assunção, prodígio nas síncopes e fraturas da história da América Latina, é imponderável que os avanços sul-hemisféricos, nem sempre de fácil percepção, sejam tomados em conta e valorizados. Por óbvio, é a consciência das conquistas comunitárias que permite essa continuidade, a independer de humores transitórios ou de governos que se sucedem. Assim como a natureza não dá saltos, tanto a criação do Mercosul como a sua sobrevida não são caso fortuito. Devem-se a uma geração privilegiada, versada em conhecimentos de integração e em construção de consensos, acadêmicos e diplomatas que, a independer de suas nacionalidades, estudaram os mesmos livros e viajaram os mesmos mares.

Se o Mercosul foi salto de qualidade para os países platinos, e basta ter vivido para saber, para o Brasil as mudanças trazidas foram ainda mais impactantes. Para nos atermos ao mundo jurídico, o efeito Mercosul trouxe imediatos aportes extraordinários, com o alinhamento ao mundo desenvolvido, a começar pela adoção da arbitragem e o advento das novas disciplinas, dos direitos do consumidor, da propriedade intelectual, da concorrência e do comércio internacional. Ainda são notáveis em nosso meio o aumento do estudo de idiomas, os intercâmbios universitários e a descoberta dos mundos estrangeiros, com seus efeitos na construção da cidadania consciente e na inserção internacional do país.

No que concerne às críticas que se fazem à integração, há no mais das vezes o traço comum de carência de informação técnica ou de expectativas exageradas em relação ao que seja ou o que possa fazer um bloco econômico, diante de limites determinados pela sua natureza e circunstâncias. Críticas ao Mercosul imaginário, por assim dizer, e não propriamente à sua realidade de bloco enquanto tal. Também, em certa medida, o que ocorre quando das críticas das oposições aos governos de turno. De fato, objeções à forma na qual se utiliza o bloco, seu caráter instrumental, e não propriamente ao bloco em si. Críticas que, compreensíveis na pugna eleitoral, no entanto desentendem a integração regional como política de Estado, fundada em tratados, antes que meros atos unilaterais de governos.

O Mercosul de 30 anos deixa profusas lições. Talvez a mais valiosa delas seja a percepção da capacidade que a América Latina tem em promover consensos, superando contendas primitivas, com progressos consolidados em duradouras construções coletivas. Sem esquecer que blocos econômicos são plataformas insubstituíveis, na busca das quimeras mais elevadas da humanidade: progresso comum, segurança coletiva e paz. Por fim, desejar que, a exemplo desta efeméride, com compreensão e discernimento, outras tantas celebrações de igual significado e importância possam estar sempre à espera de nossos povos e nações.

Jorge Fontoura é advogado e professor.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]