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| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Primeiro, uma resposta rápida: pode dar certo. A intervenção federal no Rio de Janeiro é a primeira sob a regência da Constituição de 1988 e inova em um aspecto importante com relação às experiências anteriores que ocorreram nos períodos autoritários: limita-se à área de segurança pública e manterá em suas atribuições o governador eleito. As polícias Civil e Militar, os Bombeiros e o sistema prisional do estado ficarão sob a responsabilidade direta de um interventor, um general do Exército, que terá plenos poderes operacionais nessas instituições. O interventor responderá diretamente ao presidente da República e terá uma missão difícil: “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no estado” em apenas dez meses. Há muita incerteza sobre como isso será feito, uma vez que ainda não houve o anúncio das medidas operacionais e de gestão que serão adotadas pelo interventor.

A presença de tropas federais na segurança do Rio não é um fato novo. Desde julho de 2017 está em curso uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem e, em momentos como os Jogos Olímpicos, a Copa de 2014, a Rio+20 ou a “Eco-92”, houve intensa participação das Forças Armadas no policiamento do estado. As tropas federais também participaram do processo de pacificação no Complexo do Alemão e ficaram durante 14 meses ocupando o Complexo da Maré. Além dessas ações no Rio de Janeiro, ocorreram 71 participações de militares em operações na área da segurança pública em todo o país nos últimos dez anos, segundo levantamento do jornal O Estado de S.Paulo. Isso sem contar as participações nas missões de paz no exterior, como no Haiti, e a atuação nas fronteiras, onde as Forças Armadas enfrentam cada vez mais problemas relacionados a temas como tráfico de drogas e armas por grupos criminais organizados. Portanto, o argumento ligeiro de que as Forças Armadas não têm “treinamento específico para ações de policiamento” deve ser tomado com cuidado no debate sobre a intervenção no Rio de Janeiro. O aprendizado tem sido contínuo e só despreza o avanço da inteligência militar nesse tema quem não se interessa em conhecer o assunto.

Uma crítica mais difícil de ser enfrentada envolve a motivação política do governo federal com a intervenção. Ela se apoia numa lógica simplória e se beneficia do fato de o presidente Temer liderar um governo fraco e considerado por muitos até mesmo como ilegítimo. Analistas e comentaristas conseguem juntar na mesma análise apelos contra a TV Globo, Jair Bolsonaro, Geraldo Alckmin, os juízes Marcelo Bretas e Sergio Moro e os interesses do mercado financeiro. Até o Primeiro Comando da Capital, o principal grupo criminoso paulista, lucraria com a intervenção. Claro, sem contar o governador do Estado, interessado que está em se livrar da responsabilidade de ter fracassado na solução da crise da segurança. Todos estariam de alguma forma ligados a uma complexa trama de conspirações e manipulações que visa favorecer as candidaturas de centro-direita em 2018, Temer incluído.

Dizer que os militares merecem um crédito de confiança não significa dizer que não há riscos na intervenção

Os mais exaltados acreditam até mesmo que a intervenção abrirá caminho para estabelecer no país um regime não democrático no qual os generais ocupariam, pouco a pouco, o papel que hoje desempenham Ministério Público e a Justiça Federal na luta contra a corrupção. O tom mais ou menos colegial do argumento varia, mas pedaços dessa trama aparecem nos artigos de opinião, entrevistas, nas redes sociais e em breve poderão animar os movimentos organizados contra a intervenção. Os mais prudentes limitaram-se a argumentar que se trata de uma manobra para encobrir a possível derrota na Reforma da Previdência, ou uma tentativa de criar uma “pauta positiva” para o governo no ano eleitoral. De qualquer forma, nenhum desses argumentos tem importância prática no momento. Como não é possível observar uma conspiração, não é possível convencer alguém que acredita em conspirações de que eventualmente pode não existir conspiração alguma. Fatos não têm lugar na conversa, apenas emoção e desejo político.

Outro elemento que torna a tese da conspiração eleitoral pouco factível é o fato de o Exército Brasileiro estar diretamente envolvido no enredo proposto pelos críticos da intervenção. O interventor será um general da ativa, com sólida carreira e que ocupa um cargo importante no comando da instituição. O Exército será o agente principal das ações desenvolvidas no Rio de Janeiro a partir de agora, e poucas instituições na República demonstraram a mesma resiliência, coesão e disciplina na reconstrução democrática da nação após 1988. O fato de o governo Temer recorrer a um general (e não um juiz, um promotor ou um policial federal) como interventor diz muito sobre a credibilidade das instituições militares na sociedade brasileira, e presumir que os militares teriam embarcando na intervenção sem avaliar as possibilidades de sucesso e os riscos envolvidos me parece um erro. É possível esquecer nesse debate o “sentido de missão” que permeia a formação e a conduta militar? O Exército Brasileiro manteve-se longe de qualquer tipo de vinculação a governos ou grupos políticos na sociedade, e imaginar que sua participação na intervenção seja motivada por algum tipo de ingenuidade ou interesse na intriga palaciana liderada por políticos inescrupulosos é fazer mau uso da história recente do país.

Dizer que os militares merecem um crédito de confiança quanto à seriedade de seus propósitos não significa dizer que não há riscos consideráveis na intervenção. Primeiro, há o risco de o serviço de policiamento não ser restabelecido no volume necessário e esperado pela sociedade. O patrulhamento ostensivo do estado do Rio é abertamente deficiente. A Polícia Militar fluminense (PMERJ) contava, em 2014 (último dado disponível), com 43.538 policiais nos postos de soldado, cabo e sargento para o trabalho de rua. Desse contingente, temos de desconsiderar 2.155 que estavam cedidos a outros órgãos (Justiça, Assembleia Legislativa, prefeituras etc.), 3.436 que não estavam aptos para o serviço de policiamento por razões de saúde e 10,1 mil policiais que estavam dedicados a atividades-meio na própria polícia (motoristas de oficiais, guardas de portaria, serviços de escritório, rancho etc.). Férias e afastamentos diversos consumiam, ainda, 1,6 mil policiais. O resultado é que apenas 40% do efetivo da PMERJ estava disponível para o policiamento no ano em que o levantamento foi realizado.

Leia também: Crise, intervenção e o flagelo dos “especialistas” (artigo de Diego Pessi e Bruno Carpes, publicado em 19 de fevereiro de 2018)

A estimativa é de que o quadro tenha piorado em função da crise fiscal do estado. Se considerarmos ainda o turno padrão de 24 horas de trabalho por 72 horas de folga (o regime de trabalho da maior parte da força), os 26.230 policiais aptos para o policiamento são transformados em apenas 6.560 para todo o estado do Rio. Para agravar ainda mais esse quadro, os tenentes não participam do policiamento e praticamente não supervisionam o trabalho de rua. O resultado é que o Rio tem uma força policial sem supervisão direta de seus oficiais e encontra-se entregue ao comando de sargentos (muitos promovidos sem nenhum mérito, apenas por antiguidade). Como os oficiais também são promovidos sem muita atenção ao mérito, apenas por tempo de serviço, a proporção de oficiais superiores (coronel, tenente-coronel e major) é muito maior que o necessário. Ou seja, faltam capitães e tenentes para organizar e supervisionar os serviços de policiamento e sobram coronéis nos gabinetes. Isso tem vários reflexos na qualidade dos serviços prestados pela PM. O serviço de emergência 190, por exemplo, tem um tempo médio de atendimento que é quase cinco vezes o tempo do mesmo serviço no Espírito Santo e no Rio Grande do Sul. No Rio, quem precisa de um atendimento de emergência tem de esperar pouco mais de 30 minutos para ser atendido, enquanto no Espírito Santo, no mesmo ano em que foi feito o estudo, eram seis minutos apenas. Sem aumentar o número de policiais nas ruas e reduzir o tempo de atendimento às chamadas de emergência, será muito difícil recuperar alguma credibilidade diante da opinião pública.

O segundo risco está relacionado ao processo, muitas vezes iniciado e nunca levado a cabo, de reestruturação da Polícia Militar e da Polícia Civil. O epicentro da crise é a PM. Não apenas a corrupção precisa ser tratada; a estrutura administrativa e de controle interno estão igualmente comprometidas. A PMERJ é gerida por um sistema balcanizado de chefes locais. O comandante-geral não tem diretamente o poder de decidir – nem os meios para fazê-lo – sobre o funcionamento dos batalhões e unidades da polícia. Nem mesmo coisas simples, como os procedimentos operacionais, são padronizados na instituição, que apresenta vários protocolos e modelos de treinamento conflitantes. O trabalho de abordagem policial, por exemplo, segue regras e procedimentos que variam entre as unidades e o contexto do bairro onde são realizadas, o que acarreta enormes prejuízos operacionais. E nem precisamos gastar muito tempo com o diagnóstico sobre o grau de penetração da corrupção na PMERJ. Não importa muito se são 20% ou 70% da força que estão comprometidos, a ação terapêutica é a mesma: um amplo esforço de depuração dos policiais envolvidos com a corrupção e a violência contra a população.

O mais difícil é encontrar um modelo de “tratamento” que possa ser aplicado no contexto das severas restrições orçamentárias que o Rio enfrentará nos próximos anos. Há muitos e bons estudos de caso sobre o combate à corrupção em departamentos de polícia nos Estados Unidos, Inglaterra e Ásia, mas muito poucos em países parecidos com o Brasil. Sugiro olharmos para dois casos: um mais conhecido, a Colômbia, e outro menos, Honduras. A Polícia Nacional da Colômbia é hoje uma das melhores instituições policiais das Américas. Enfrentou nas décadas de 1980, 90 e 2000 os maiores cartéis de produção e distribuição da cocaína do mundo (só depois a liderança passou para os cartéis mexicanos) enquanto se reorganizava internamente e desenvolvia fortes estruturas de controle da integridade de seus policiais. O processo de formação também foi completamente reestruturado: hoje a Polícia Nacional da Colômbia tem uma das melhores escolas de graduação e pós-graduação em Ciências Policiais da região, e o nível de confiança da população na instituição aumentou três vezes nos últimos 15 anos (de 5% para 16%) segundo o Latinobarômetro.

Leia também: Intervenção no Rio de Janeiro (editorial de 16 de fevereiro de 2018)

O segundo caso interessante é Honduras, que está passando por um processo de reorganização de sua Polícia Nacional com o apoio da Organização dos Estados Americanos. Um comissão depuradora foi formada por membros externos à Polícia Nacional de Honduras com o objetivo de avaliar individualmente os oficiais, a começar pelos do nível mais alto. Três indicadores são levados em conta: o consumo de cocaína (um fio de cabelo basta para o exame), a evolução patrimonial e a existência de processos e informações de inteligência sobre o envolvimento com a corrupção. A lógica é ir do mais simples para o mais complexo. Por que não testar o consumo de cocaína pelos policiais do Rio? É simples, barato e um ótimo indicador de que algo não está indo bem. Depois disso, vem a análise patrimonial. No Brasil isso pode ser feito de forma muito mais rápida do que em Honduras; basta uma consulta ao CPF do policial e a ajuda do Coaf. Ainda no caso de Honduras, para aqueles que eram conhecidos do sistema de inteligência por sua participação no narcotráfico internacional, foram montadas investigações criminais a partir dos informes de inteligência. Traduzindo para o caso do Rio, podemos começar com os coronéis que são chefes de milícia, os amigos de banqueiros de bicho e os donos de lanchas de luxo. Isso resolveria boa parte do problema. Uma comissão depuradora na PMERJ poderia processar criminalmente os mais perigosos, afastar outros por medidas administrativas e reformar aqueles que simplesmente não têm condições de desempenhar bem suas funções.

Finalmente chegamos ao problema sui generis do Rio de Janeiro. A intervenção enfrentará o risco representado pelo controle do crime organizado – milícias incluídas – sobre extensa e populosa área urbana. Nenhuma outra cidade da América Latina tem hoje a geografia criminal do Rio de Janeiro. A Colômbia enfrentou e resolveu o controle territorial da guerrilha e dos cartéis nas áreas urbanas já nos anos 1990 (a pacificação do M-19, que atuava em áreas urbanas, aconteceu muito antes das Farc). Se o crime organizado não for obrigado a mudar de estratégia, a se desarmar e abrir mão do controle de seus territórios controlados, dificilmente a opinião pública será convencida de que algo está mudando de verdade. Como isso pode ser feito? Essa pergunta exigirá um trabalhoso processo de planejamento, mas isso está longe de ser uma missão impossível; apenas vai exigir muita reflexão, pesquisas de benchmark e boa gestão.

Depois vem o desafio que as UPPs não conseguiram superar: desenvolver um modelo adequado para o policiamento das áreas controladas pelo crime organizado. Sugiro não perder tempo com a discussão sobre a tal “ausência do Estado” nessas áreas. Sim, falta Estado, mas falta aquilo que só o Estado pode fazer: a garantia da lei e da ordem. Creches, escolas, postos de saúde, serviços de luz e água, recolhimento de lixo são oferecidos nessas áreas com a mesma precariedade com que são oferecidos em outras áreas pobres do estado e do país. Não é a falta desses serviços que explica por que o crime organizado domina essas áreas. Claro que mais empregos, um serviço melhor de internet e boas escolas podem fazer muita diferença, mas esses serviços públicos e privados são diretamente afetados pela atuação do crime organizado. Será preciso, portanto, encontrar um modelo de policiamento que não repita os erros das UPPs – que se baseavam no patrulhamento comunitário e de proximidade em todas as unidades –, mas um modelo que seja capaz de oferecer flexibilidade tática para os comandantes locais da PMERJ. O Rio precisa de algo como a Rota ou as Forças Táticas da PM de São Paulo para atuar no patrulhamento das favelas, e não mais ações do Bope. Tecnicamente falando, precisamos de mais “policiamento agressivo” (combinado, onde for possível, ao policiamento de proximidade) e menos ações táticas de contrainsurgência. Nada disso está disponível na PMERJ e precisa ser construído. Em dez meses, não dá. Em cinco anos, talvez.

O último risco: tentar avançar sem os instrumentos de mensuração adequados. A transparência na gestão das informações será decisiva para o sucesso da intervenção. Aposto que as notícias não serão boas durante muito tempo e os avanços serão, muito provavelmente, lentos. Nesse contexto de adversidade, a tentação de desmontar ou controlar as estruturas internas da Secretaria de Segurança que produzem as estatísticas criminais será provavelmente enorme. Poder para isso na mão do interventor há; resta torcer para que prevaleça a visão estratégica de que melhor um dado ruim do que nenhum dado. Sem informações confiáveis, como as que hoje o Instituto de Segurança Pública produz, e sem organizações independentes monitorando as ações das polícias e das Forças Armadas, será impossível formar uma coalizão estável e majoritária na sociedade em apoio à intervenção. A sociedade está dividida; a comunidade científica e artística (que tem enorme peso na vida social do Rio) está abertamente hostil à intervenção. Nesse contexto, sugiro tratar as críticas com muito cuidado e respeito quase reverencial. Sem atalhos, será preciso ter coragem para enfrentar as balas dos criminosos e também para encarar a hostilidade daqueles a quem se está servindo.

Leandro Piquet Carneiro é professor e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas (NUPPs)da Universidade de São Paulo.
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