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Felipe Lima

“A presidente de Taiwan telefonou.” Quando Donald Trump tuitou a notícia, um pequeno terremoto abalou Washington. Ao receber, pessoalmente, a ligação telefônica, Trump estava descartando um tabu simbólico de elevado valor diplomático. Os EUA não reconhecem a soberania de Taiwan e, portanto, autoridades taiwanesas não têm interlocução com o chefe de Estado, mas apenas com diplomatas. O pior, contudo, veio depois: diante das críticas à conversa, Trump sugeriu que a manutenção da política de “uma só China” depende de concessões chinesas no âmbito comercial. É a prova de que o futuro presidente da maior potência do mundo não compreende a regra do jogo.

A política de “uma só China” nasceu na visita de Richard Nixon à China, em 1972, consolidou-se no governo de Gerald Ford e ganhou selo oficial com o reatamento diplomático, em janeiro de 1979, no governo de Jimmy Carter. Naquela penúltima década da Guerra Fria, por meio da aproximação com a China, os EUA redesenharam o mapa geopolítico da Ásia, isolando a União Soviética. O governo chinês reconheceu tacitamente, como parte do grande acordo, a autonomia total da província rebelde de Taiwan, que funciona como uma nação soberana, mas não pode ostentar os ornamentos de um Estado independente. Trump imagina, equivocadamente, que tudo isso está disponível para renegociação no balcão de uma barganha comercial.

A ideia da soberania tem fundas raízes entre os taiwaneses. Taiwan só foi governada diretamente por Pequim durante menos de duas décadas, na segunda metade do século 19, e entre 1945 e 1949, até a transferência do regime do Kuomintang para a ilha, na hora da vitória de Mao Tsé-Tung. Os governantes do Kuomintang, nacionalistas chineses, acalentavam o sonho de um retorno triunfante à Cidade Proibida – e, coerentemente, afastaram qualquer projeto de independência taiwanesa. Contudo, desde 1988, com a democratização da ilha, ressurgiu o tema da soberania. Tsai Ing-Wen, a presidente com quem Trump conversou, pertence ao Partido Democrático Progressista, rival do Kuomintang, que se inclina cautelosamente em direção à independência.

A regra do jogo nas relações EUA-China-Taiwan é a ambiguidade estratégica. Os EUA não reconhecem Taiwan como nação soberana, mas vendem armas ao governo da ilha e, na prática, mediante a condição de que não se tente uma declaração de independência, garantem a sua segurança geopolítica. A China, por seu lado, afirma o princípio da reunificação do país, mas não toma iniciativas concretas para alterar o status quo. A política de “uma só China” de Washington é o alicerce do edifício de segurança no Estreito de Taiwan. Ronald Reagan convidou autoridades taiwanesas à cerimônia de inauguração de seu governo, em 1981, provocando calafrios em Pequim. Trump, porém, emite sinais muito mais dramáticos. Do seu círculo mais próximo, partem notícias sobre a costura de um acordo comercial EUA-Taiwan e sobre um eventual convite à própria presidente taiwanesa para a inauguração de Trump.

A regra do jogo nas relações EUA-China-Taiwan é a ambiguidade estratégica

A ignorância é parte da equação. Os especialistas republicanos em Ásia recusaram-se a participar da equipe de governo de Trump, composta por figuras que desconhecem a história e a cultura política chinesas. A China move-se por interesses nacionais bem definidos e guarda na sua memória os incontáveis episódios de humilhação a que foi submetida pelas potências imperiais. Henry Kissinger, então assessor de Segurança Nacional de Nixon, que concebeu a aproximação sinoamericana, compreendia as motivações chinesas e as “linhas vermelhas” inscritas no intercâmbio diplomático. “Podemos viver sem Taiwan, no momento; deixemos que eles venham daqui a 100 anos”, disse Mao a Nixon, em 1972. Na frase, havia um duplo recado entrelaçado: a promessa de não atacar Taiwan, atada à garantia de que os EUA não promoveriam a independência da ilha. De lá para cá, quase tudo mudou na China – mas essa interdição fundamental permanece igualmente válida.

A mola que impulsiona Trump é um obsessivo nacionalismo econômico. O presidente eleito parece convencido de que pode reverter os efeitos da globalização e da mudança tecnológica por uma série de atos de vontade. Desse erro conceitual básico emana um método de conduta na política internacional e, em especial, nas relações com a China. O presidente eleito acredita que os chineses estarão dispostos a misturar, numa única agenda de transações, temas tão distintos quanto Taiwan e o comércio. Obviamente, ele pretende operar, na complexa arena da política internacional, com as grosseiras ferramentas que utiliza no ambiente das negociações empresariais.

A réplica chinesa à pretensão trumpiana veio sob duas formas. Numa declaração oficial, Pequim registrou que a “integridade territorial” da China não é negociável. Informalmente, usando o Global Times, um veículo de mídia estatal, o governo chinês classificou o gesto de Trump como “um ato infantil imprudente” e convidou-o a “aprender humildemente sobre diplomacia”.

A relação EUA-China tornou-se um pilar crucial da estrutura do sistema internacional. De um lado, ela envolve o futuro das finanças globais e do comércio mundial. De outro, a estabilidade geopolítica do Extremo Oriente – isto é, em outras palavras, a segurança estratégica do Japão e da Coreia do Sul face às tensões causadas pelo programa nuclear da Coreia do Norte. Quando, frivolamente, sugere que blefará com o estatuto político de Taiwan, Trump arrisca-se a produzir incontroláveis reações em cadeia.

Nos anos 1950, duas confrontações sucessivas no Estreito de Taiwan colocaram EUA e China perto de uma guerra direta. A China daquele tempo não tinha capacidade bélica suficiente para invadir Taiwan. A China de hoje, engajada numa célere modernização militar, é um animal diferente. O “ato infantil” de Trump pode ter consequências ainda mais funestas que uma guerra comercial.

Demétrio Magnoli é sociólogo.
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