• Carregando...

A República Tcheca, que teve no dramaturgo Vacláv Havel seu primeiro presidente, agora exibe-se ao mundo na persona vulgar de Milos Zerman. Em discurso de Natal, o terceiro presidente do país denunciou o que qualifica como uma “invasão organizada” da Europa por refugiados muçulmanos. “Por que essas pessoas não lutam contra o Estado Islâmico e pela liberdade de suas pátrias?”, indagou a mesma figura que ingressou no Partido Comunista da Tchecoslováquia em 1968, durante a Primavera de Praga, e nele permaneceu após a invasão soviética, escolhendo o aconchego do poder enquanto tantos compatriotas, inclusive Havel, optavam pelos rigores da dissidência.

Zerman é uma desgraça. Em 2011, antes de eleger-se presidente, quando ainda não se iniciara a crise dos refugiados, ele falou como um cruzado e, brandindo a palavra da moda, qualificou o Islã como “o inimigo”; isto é, “a anticivilização que se estende da África do Norte à Indonésia”. Mas o tcheco não está só. O “choque de civilizações”, uma invenção do cientista político americano Samuel Huntington, disseminou-se nos discursos de governos da Europa centro-oriental ex-soviética e de partidos nacionalistas xenófobos da Europa ocidental. Em 2015, sob os impactos combinados do fluxo de refugiados e dos atentados de Paris, as fórmulas vergonhosas utilizadas na franja extrema do espectro político adquiriram um verniz de respeitabilidade.

Numa Europa confusa sobre a sua própria identidade, o maior perigo não são os extremistas estrangeiros

A Europa das liberdades e dos direitos humanos é uma película tênue: a bandeira desfraldada no pós-guerra como resposta à hecatombe nazista e à arrogância do stalinismo triunfante. Atrás dela, existe uma outra Europa, persistente e sombria, cujas raízes espalham-se pelo solo do cristianismo conservador, pré-fascista e protofascista. É essa “Europa profunda” que levanta a cabeça, sob formas múltiplas, na hora da recessão econômica, das imigrações muçulmanas e dos atentados. Tanto quanto Zerman, a francesa Marine Le Pen, que sonha com a presidência; o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban, com seus alertas sobre a “ameaça” à “cultura cristã europeia”; e o Partido do Povo Suíço, organização populista de extrema-direita que obteve 29% do voto popular em outubro, são manifestações de uma “Europa de Vichy” jamais derrotada.

“Cultura” e, mais ainda, “civilização” – por meio dessas palavras carregadas, a “Europa de Vichy” passa uma borracha na palavra “indivíduo”, que abomina. Na sequência dos atentados de Paris, não foram poucas as vozes, inclusive entre analistas supostamente cultos, que cobraram dos muçulmanos um repúdio mais intenso, especial e singular, aos terroristas jihadistas. A resposta certa surgiu num vídeo postado por cinco jovens paquistaneses, que viralizou nas redes do país. Ao som de fundo de Imagine, de John Lennon, eles disseram que “não podemos ser responsabilizados por uns poucos dementes que, por algum motivo, reivindicam ser iguais a nós”. E explicam que não são diferentes da imensa maioria das pessoas do mundo, que ficam irritados quando não tomam café pela manhã e que “a única coisa que cortam e assam é um excelente bife suculento”.

“Somos pessoas iguais a você”, lembram os cinco paquistaneses. “Temos, basicamente, os mesmos problemas que você: as mesmas expectativas, sonhos e ambições”. São, sobretudo, capazes de entender o drama pelo qual passaram os franceses, pois não esqueceram que, um ano atrás, 132 crianças foram massacradas num atentado do Talibã contra uma escola de Peshawar. Os refugiados sírios que chegam à Europa carregam o fardo de experiências semelhantes – e, por isso, fogem.

Há muitas, diferentes, respostas certas para a acusação abusiva contra os muçulmanos. O jornalista britânico Mehdi Asan, um muçulmano, denunciou o antissemitismo tão comum entre parcelas das comunidades muçulmanas na Europa como “nosso pequeno segredo sujo”, registrando que a propaganda contra os judeus nasce nos meios de comunicação estatais de países como a Arábia Saudita, o Irã, o Paquistão e mesmo a Turquia. Um cidadão comum de Cingapura, Sulaiman Daud, postou em seu Facebook uma mensagem largamente compartilhada na qual diz que “o Estado Islâmico é o principal inimigo do Islã, não dos EUA, de Israel, da França, da Alemanha ou da Rússia”. E conclui: “Temos de assumir o problema. Temos de admitir que é um problema religioso e renovar nosso compromisso com um Estado secular que trata igualmente todas as religiões”.

O “Estado secular” de que fala Daud existe na Europa. Ao lado da liberdade de religião, ele ergue-se sobre outro pilar, que é a cidadania. Uma definição possível de cidadania é o direito das pessoas de serem tratadas como indivíduos, isto é, de não serem rotuladas segundo suas crenças religiosas ou políticas, nem segundo suas origens étnicas ou geográficas. Na “Europa de Vichy” – dos Zermans, Orbans, Le Pens e tantos outros –, condensa-se um chamado às armas, não contra o Islã ou o terrorismo, mas contra as liberdades e os direitos humanos. Os muçulmanos funcionam como pretextos. Ocupam, hoje, um lugar que já foi dos judeus.

“Por que essas pessoas não lutam contra o Estado Islâmico e pela liberdade de suas pátrias?” Dias antes do Natal, o grupo somali al-Shabab emboscou um ônibus intermunicipal nas proximidades de El Wak, no norte do Quênia. Seguindo o padrão de ataques anteriores, os jihadistas ordenaram que os muçulmanos se distinguissem dos cristãos, para matar apenas os segundos. O massacre foi evitado quando os muçulmanos rejeitaram a ordem, desafiando os terroristas a liquidarem todos os passageiros juntos.

Zerman, que não estava no ônibus queniano, fala a linguagem do al-Shabab. “Somos pessoas iguais a você” – a mensagem dos cinco paquistaneses nada significa para os jihadistas somalis, nem para o presidente tcheco. Numa Europa confusa sobre a sua própria identidade, o maior perigo não são os extremistas estrangeiros.

Demétrio Magnoli é sociólogo.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]