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A ditadura militar começou a desabar com um ato ecumênico, verdadeiramente espiritual, celebrado na Sé de São Paulo, em memória do jornalista Vlado Herzog e em protesto contra o seu assassinato dias antes, nos cárceres do DOI-Codi local.

Neste domingo, 25 de outubro, no mesmo templo paulistano, exatos 40 anos depois da sua estúpida morte, novo culto inter-religioso está sendo convocado, desta vez para evocar aquele momento único de congraçamento humano e resistência à brutalidade.

O tempo decorrido não nos deixa mais tranquilos: fantasmas com outras roupagens substituíram os de então, novas perversidades articulam-se ostensivamente em diferentes recantos do planeta. Desatento, tomado por estranhas comoções, nosso país deixa-se dissolver no ódio e na desídia. As certezas então produzidas pela unidade e solidariedade parecem irremediavelmente desfeitas apenas quatro décadas depois.

Nesta era das gigantescas redes e vastos compartilhamentos, não estamos conseguindo aquele mínimo de convergência para distinguir as sutilezas do mal. A intensidade da comunicação não forma – ao contrário, deforma – comunhões e comunidades. Estamos sozinhos, cada um por si.

Não estamos conseguindo aquele mínimo de convergência para distinguir as sutilezas do mal

As próprias religiões estão sendo torpemente usadas para difundir desconfianças e fragmentações. O boato espalhado pela imprensa italiana sobre o tumor no cérebro do papa Francisco é uma clara manobra para desqualificar suas arrojadas tentativas de agregar, incluir, aproximar tanto na esfera dos costumes como na política.

A gigantesca e inacreditável lorota proposta pelo premiê israelense, Bibi Netanyahu – aliás, filho de um eminente historiador –, sobre a suposta origem palestina do projeto nazista de extermínio dos judeus na Segunda Guerra Mundial dá uma ideia da paranoia que domina os setores xenófobos da sociedade israelense. O negacionismo do Holocausto no qual os aiatolás iranianos estão engajados jamais fabricou tão execrável disparate, inédita dessacralização do martírio dos 6 milhões de vítimas do ódio racial, a maior catástrofe da história.

Onde é que o bilionário norte-americano Donald Trump poderia encontrar inspiração para formatar sua jurássica plataforma política senão entre as seitas fundamentalistas do seu país?

Com a credibilidade reduzida a pó e um pé no primeiro degrau do patíbulo, o deputado Eduardo Cunha (por enquanto presidente da Câmara Federal) tenta desesperadamente armar uma base de apoio; por isso, recorre com evidente desespero aos correligionários evangélicos. O projeto de sua autoria que fez aprovar há dias na Comissão de Constituição e Justiça torna quase impossível o aborto em caso de estupro, apesar de garantido pela legislação. De uma perversidade medieval, torna o poder público um cúmplice da maternidade precoce, incubadora de uma geração de menores abandonados que logo irão reforçar a delinquência.

Eduardo Cunha é o clássico caçador de bruxas, modelado pelo farisaísmo, pela hipocrisia, servo de duas moralidades: quando se trata do erário e de bens públicos, dos quais deveria ser guardião, não tem qualquer escrúpulo em apropriar-se. Mente descaradamente sem se importar com a sua responsabilidade de guardião da fé pública.

Eduardo Cunha saiu do armário para nos lembrar que os fundamentos ideológicos e morais da brutalidade do regime militar permanecem intactos.

Alberto Dines é jornalista.
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