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Não demorou muito para o tema do aborto vir à tona com os recentes casos de microcefalia provocados pelo vírus zika. Em recente depoimento, Nelson Tavares, secretário da Saúde do Mato Grosso do Sul, afirmou a necessidade de discutir sobre o aborto quando se trata de combater esse tipo de doença. O problema de fundo — independentemente do que diga o Código Penal ou o STF — está em entender em que medida o aborto deva ser considerado não apenas uma opção como, em última instância, a melhor das opções para a microcefalia.

Aborto terapêutico, na verdade, não passa de um novo nome para uma velha fantasia: a eugenia

O aborto, em nenhuma hipótese, deve ser tratado como uma opção terapêutica. Aborto é e sempre será o ato aniquilador da vida de um inocente impossibilitado, devido à sua condição pré-natal, de se defender — seja fruto de estupro, seja consequência de uma gravidez indesejada, seja por padecer das mais severas anomalias. O fato é que, ao refletir acerca da possibilidade de o aborto não ser apenas uma opção para os casos de microcefalia, mas a melhor delas, se faz necessário rastrear as crenças a partir das quais essa opção se sustenta.

Aborto terapêutico, na verdade, não passa de um novo nome para uma velha fantasia: a eugenia. Eugenia diz respeito àquela arrogante presunção de controle sobre como tornar o mundo um lugar melhor, mais justo, mais perfeito e mais limpo — principalmente mais limpo. O ódio ao defeituoso, a aversão sistemática à imagem do sofrimento e o nobre sentimento de repulsa diante do risco de ter de perder o precioso tempo com aqueles que inevitavelmente se tornarão um insuportável peso para nós fazem da opção pelo aborto a única opção saudável para uma consciência implicitamente eugênica.

Ora, por que colocar no mundo a imagem e semelhança da nossa desgraça se somos capazes de interromper, sem pudor, sem culpa, sem dramas, sem ritos e sem mistérios, a gestação de uma pessoa severamente maculada por uma grave doença? A ciência, a tecnologia, a filosofia contemporânea, o direito, os estetas e os políticos desenvolveram ferramentas redentoras para que a opção saudável aconteça sem que haja necessidade de lidar com a constrangedora presença da enfermidade no mundo.

A desgraça pode ser curada por meio desse gesto nobre de só dar à luz ao que seja digno deste belo, justo e higiênico mundo que estamos em vias de concluir. O desgraçado, o sujo e o tortuoso não são dignos da nossa perfeição, do nosso conforto, das nossas ambições mais caras. Portanto, não deixa de ser um favor para o embrião abortá-lo enquanto ele não passa de um pequeno saco de células degeneradas. Ele não se enquadraria no nosso irresistível senso de funcionalidade e, consequentemente, de felicidade. Aqui, decididamente, não há lugar para os doentes.

Então, como diz o secretário, vamos falar do aborto. O jornal Folha de S.Paulo de 10 de janeiro contou a história de Joana, que vive no interior da Bahia, onde houve um surto do zika. Ela foi infectada com 12 semanas de gestação e, na 30.ª semana, um ultrassom morfológico detectou no feto “graves lesões cerebrais, como dilatação dos ventrículos (cavidades), calcificação e microcefalia (...). No consultório, foi aplicada uma injeção de cloreto de potássio no coração do feto. Com o diagnóstico de ‘óbito fetal’, Joana foi levada a um hospital privado. Lá recebeu medicação para induzir o parto normal. Dois dias depois, ela recebeu alta”, diz o jornal.

A premissa fundamental para tirar a vida de um feto de 30 semanas não é a de que “o filho sofrerá as mazelas do mundo no futuro”. O que sustenta esse tipo de decisão é, pelo contrário, a mentalidade eugênica impregnada na consciência dos pais, médicos, agentes sanitários e políticos cheio de boas intenções, incapazes de suportar a ideia de ter de colocar no mundo uma criança que não reflete a estima que todos nós sentimos por nós mesmos. Nada como receber uma medicação com toda a segurança do consultório e, dois dias depois, estar em casa com a consciência tranquila.

Francisco Razzo é mestre em Filosofia pela PUC-SP.
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