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Em uma foto tirada no início dos anos 60, eu apareço sentada na varanda lateral da nossa casa vitoriana, em uma travessa da Hope Street, em Providence, com meus pais, minhas três irmãs e meu irmão. Tínhamos acabado de chegar da escola dominical, na Primeira Igreja Unitária. Nós, meninas, estávamos de saia e blusa brancas, impecáveis, e meias altas presas por ligas (a meia-calça, lançada pouco depois, foi uma experiência libertadora). Meu pai e meu irmão, cabelos cortados à escovinha, gravatas estreitas, camisas de poliéster – talvez a genuína Dacron, muito mais provavelmente uma marca genérica. Para uma família com cinco filhos, cada centavo fazia uma enorme diferença. Estamos sorrindo, limpinhos, brancos, bem alimentados, bem vestidos, animados, radiantes.

Imagino que um bom adjetivo para descrever nosso clã seja “típico”, embora na época, quando estava no começo do ensino médio, já compreendesse bem nossas diferenças: minha mãe trabalhava quando poucas o faziam. Ao contrário de praticamente todo mundo em East Side, não éramos católicos, nem judeus, mas unitaristas. E havia, é claro, minhas cintas e muletas: eu contraíra pólio pouco antes do surgimento da vacina Salk.

No retrato, minha perna direita, a que eu sempre chamava de “ruim”, estava escondida atrás da esquerda, que era a “boa”. Alguém, talvez um dos meus pais, quem sabe o vizinho que tirara a foto, tinha, sem perguntar – e muito provavelmente sem nem pensar –, tirado minhas muletas de vista. Anos depois, durante o breve período em que conseguira caminhar só de bengala, mas tinha me livrado da vergonha da minha deficiência, toda vez que tirava uma foto fazia questão de deixá-la plantada bem na minha frente, como a dizer que ela fazia parte de mim.

Os filhos deficientes têm quatro vezes mais probabilidades de sofrer violência que os não portadores de deficiências

Olhando para essa foto, eu me lembro. E a lembrança me abala, perturba meu corpo e minha mente. Estou deitada de costas no sofá da sala de nossa casa, na Larch Street, meu pai em cima de mim, as mãos no meu pescoço, apertando cada vez mais. Em outra ocasião, aconteceu na minha cama, no andar de cima da casa perto de Moonstone Beach, em South County, Rhode Island. No meu quarto da nossa casa em Providence. Estrangulamento. É difícil para mim até escrever a palavra. Queria dizer algo que soasse menos chocante, como “sufocamento” ou “asfixia”.

Segundo um instituto de prevenção da violência, “estrangulamento é a demonstração máxima de poder, por meio da qual o agressor prova ter controle até sobre a respiração da vítima”.

E acontecia porque eu estava discutindo com uma das minhas irmãs, ela querendo ver uma coisa e eu outra na televisão. Acontecia porque estava preparando o almoço e meu pai achou que eu tinha deixado o fogo muito alto. Acontecia por razões de que não me lembro.

Certamente acontecia, pelo menos em parte, por causa da bebida. Meu pai bebia toda noite: depois do trabalho, os martínis pré-jantar eram seguidos pelo highball pós-jantar, uísque e água, feito e refeito e refeito e refeito. Anos depois, um velho amigo da família me encararia para dizer: “Anne, eu costumava ir à sua casa, à noite, para encontrar seu pai tropeçando nas pernas, a língua enrolada”. E completou com palavras que me pegaram de surpresa, talvez porque fosse homem e tão forte e porque meu próprio medo do meu pai parecesse tão secreto, tão solitário: “Morria de medo do seu pai quando ele estava bêbado”.

E, é claro, acontecia por causa da minha deficiência.

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Minha irmã mais velha começou a eulogia no funeral dele dizendo: “Não era fácil ser filha do meu pai”. Mas o fato é que nenhum dos meus irmãos sofreu a mesma brutalidade física que eu.

Segundo estatísticas da Organização Mundial de Saúde, baseadas em duas resenhas sistemáticas publicadas na revista médica The Lancet, os filhos deficientes têm quatro vezes mais probabilidades de sofrer violência que os não portadores de deficiências.

De certa forma, eu me consolo com esses números obtidos pela agência líder de saúde no mundo, e divulgadas por uma publicação de tamanho prestígio. Não estou só. Não acontecia comigo, como minha família sempre insinuou, porque eu era uma criança difícil, embora eu tenha certeza de que fui, sim. Por alguma reação alquímica entre minha deficiência, o alcoolismo do meu pai e o mundo à nossa volta, a minha condição era vista como algo vergonhoso.

Não conheço o motivo para a violência dele. Sempre ficava imaginando o que teria testemunhado quando criança, pois tinha um relacionamento tenso com o próprio pai e era extremamente protetor em relação à mãe. Meu avô dormia no quarto principal, em uma cama que não podia ser tão ridiculamente imensa como era minha impressão de criança, e minha avó, em uma cama estreita, em um quarto minúsculo sob o beiral. Se a revolta em relação ao próprio pai e a dedicação à mãe eram resultado da violência que testemunhara? Ele serviu a Marinha, no Pacífico, durante a Segunda Guerra Mundial, e algumas vezes, de uma maneira estranhamente desprendida – ao mesmo tempo jocosa e bombástica –, falava dos soldados japoneses que foram mortos a tiros quando tentavam se render (anos depois, alguém me contou como tinha sido sofrido um estupro coletivo da mesma forma). Trauma de infância, de guerra? Jamais saberei.

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Mas meu pai também era engraçado e generoso. Quando eu tinha 6 anos e me recuperava de uma cirurgia, a perna enfiada em uma tala plástica durante um verão sufocante, chorando de dor e morrendo de sono, meu pai ficava na porta do quarto, com uma vassoura, e dançava até eu começar a rir e finalmente conseguir dormir. Levava-nos para passear em seu Modelo A – que comprara de um de seus alunos por US$ 10 –, sacolejando em estradinhas de terra, nós sete no carro, cantando a plenos pulmões: “Porque faz parte da artilharia de campo / Grite seus números em voz alta e com força!” Na nossa casa de praia, depois de comer lagosta e mexilhão no jantar, ele se sentava conosco no deck e ficava nos vendo cuspir sementes de melancia um no outro. Uma hora ou duas depois, íamos todos à Vanilla Bean para tomar sorvete. Depois da invasão dos EUA ao Camboja, em maio de 1970, ele fez uma pipa gigantesca, com o símbolo da paz, para empinar no dia de sua formatura na faculdade (embora tenha ficado grande demais para caber em seu carro).

O lance da violência íntima é que ela é muito... íntima. Envolvia não só a proximidade e a pressão das mãos do meu pai no meu pescoço, mas as complicações da minha vida e da dele, interligadas.

Alcoolismo, trauma. Mesmo assim, no fim das contas, volto à minha deficiência: será que meu corpo assimilou, com todas as reviravoltas e dramas interiores de uma família, as evidências externas de tudo que havia de errado ali? Afinal de contas, meus pais acreditaram na mentira de que a pólio, com perseverança e garra, poderia ser superada. E, apesar das sessões semanais de fisioterapia, dos exercícios diários após o jantar e as repetidas cirurgias, continuei deficiente.

Naquela época do pós-guerra, parecia que tudo ia melhorar cada vez mais: os carros teriam aletas maiores, as saias das mulheres ficariam cada vez mais rodadas; em breve teríamos mochilas voadoras e robôs para fazer o serviço doméstico. E havia meu corpo, teimoso, inevitável – algo que, aos olhos do mundo, deveria ser descartado.

Anne Finger é membro da Academia Norte-Americana em Berlim. Seu livro mais recente é “A Woman, in Bed”.
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