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Abdelaziz Bouteflika, o presidente da Argélia, anunciou por meio de uma carta, em 11 de março, que não vai concorrer pela quinta vez à reeleição, e cancelou o pleito, programado para 18 de abril. Explicou também que haveria uma conferência nacional para a realização de uma reforma política e constitucional, e que uma nova constituição seria redigida e aprovada por referendo.

A decisão surpreendente é decorrência dos protestos maciços organizados pelos argelinos, desde 22 de fevereiro, contra a tentativa de Bouteflika de se reeleger. O líder, com 82 anos de idade, teve um AVC em 2013 e não se dirige à população há seis anos. O país achou sua intenção de manter o poder absurda e ofensiva.

Na manifestação inicial, em fevereiro, e em 1.º de março, aderi ao movimento em Argel. E me vi cercada por gente de todas as camadas socioeconômicas: homens e mulheres, idosos em cadeiras de rodas, pais levando os filhos nos ombros. Muitos empunhavam cartazes com frases mordazes, sutis ou engraçadas; outros tantos levavam sacos de lixo para recolher as garrafas d’água que os manifestantes carregavam; teve também quem organizou a limpeza das ruas depois que o ato público terminou.

Ao passarmos por um hospital, a multidão parou a gritaria para não perturbar os pacientes; um pouco depois, voltou a se calar ao passar diante de um funeral. Cada vez que a procissão chegava a uma barricada policial, repetia “silmiya, silmiya” (“de paz, de paz”) ou “cha’b w chorta khawa khawa!” (“a polícia e o povo são irmãos!”). Vi policiais rompendo em choro e recebendo o abraço dos manifestantes. Foi maravilhoso testemunhar o despertar do povo argelino.

O protesto atual não tem líderes e começou com alguns cidadãos comuns convocando outros nas redes sociais

A Argélia não via movimentos assim desde os anos 1990; seu alcance e natureza pacífica surpreenderam muita gente no próprio país e no exterior. O protesto atual não tem líderes e começou com alguns cidadãos comuns convocando outros nas redes sociais, principalmente no Facebook. Inúmeros grupos de estudantes, professores, advogados, juristas, médicos, funcionários públicos e operários do setor petroleiro simplesmente se reuniram pelo bem comum.

Até os veteranos da guerra da independência, que historicamente sempre foram leais ao regime, estiveram lá, marchando com o povo, como também diversos líderes e parlamentares importantes que se desligaram da Frente de Libertação Nacional. Os partidos de oposição, divididos, marginalizados, sugados pela situação e gozando de pouca credibilidade, também participaram das marchas, mas foram amplamente ignorados.

O povo, alegre, fez festa em Argel e outras cidades ao saber que Bouteflika não iria disputar a reeleição devido aos protestos – mas, ao mesmo tempo, está cauteloso, e com razão, após o que considera apenas um primeiro passo.

O desatino da candidatura de Bouteflika e a cacofonia que gerou são resultado da própria natureza do Estado. Atrás do idoso alquebrado, há uma estrutura de poder altamente complexa e obscura, composta de redes intrincadas e sobrepostas, interesses variados e divergentes, e alianças fluidas e inconstantes.

A Frente de Libertação Nacional (FLN), principal movimento nacionalista, e sua ala militar, o Exército de Libertação Nacional, lideraram a guerra da independência, ganha contra os franceses – e o segundo se tornou o exército do país, ou o Exército Nacional Popular.

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Leia também: O Islã é compatível com a modernidade? (artigo de Ali Zoghbi, publicado em 1.º de dezembro de 2017)

A legitimidade resultante da luta armada contra a força colonial deu à instituição uma posição fundamental no controle do poder da Argélia. Ela se identifica com a nação e acha inconcebível se separar do aparato político; para seus líderes, a possibilidade de eleição de políticos civis colocaria o país em perigo.

O fato é que o Exército manda, mesmo que não governe. Está no topo do poder, composto por vários apparatchiks da FLN, parlamentares e magnatas, ligados por laços familiares ou regionais. Infelizmente, desde a independência, em 1962, o nepotismo e a corrupção se mantêm como elementos centrais desse modelo de governança.

O regime passou de sumariamente autoritário para uma mistura híbrida, em 1995, quando reinstaurou os processos constitucionais, mas os governantes mantiveram o controle graças ao uso tático das reformas política, econômica e constitucional.

Em 2012, quando a Primavera Árabe sacudia a região, o governo permitiu o registro de novos partidos políticos, melhorou a representação de gênero no parlamento e criou uma comissão eleitoral nominalmente independente. Também introduziu maiores subsídios, melhores salários e crédito mais fácil para jovens e empreendedores, ainda que esses recursos fossem controlados e distribuídos seletivamente.

As eleições se tornaram rotina desde 1995, mas marcadas por irregularidades, e não são nem completamente justas, nem livres. Uma fração de participação política passou a ser permitida após o fim da guerra civil, em 2002. Diversos grupos de oposição – nacionalistas, democratas, independentes e até islamitas – podiam fazer parte da arena política, mas o Estado cuidou de marginalizá-los e dividi-los mediante a cooptação.

As eleições se tornaram rotina desde 1995, mas marcadas por irregularidades

Às organizações da sociedade civil também foi permitido algum espaço para contestação, mas as autoridades usavam de repressão, cooptação e regulamentação para mantê-las fragmentadas e fracas demais para ameaçar o governo.

A economia foi parcialmente liberalizada desde 1994, e mais ainda sob Bouteflika, mas basicamente servia à elite dominante e seus clientes, que recebiam financiamentos generosos, privilégios e monopólios especiais em troca de lealdade e apoio.

A capacidade do sistema de reagir com rapidez e distribuir recursos políticos e econômicos oportunistas não só ajudou a reforçar sua legitimidade como também a impedir qualquer mobilização e a derrotar toda e qualquer força oposicionista.

Nas últimas semanas, o regime teve problemas para responder aos protestos – e sua falta de reação ao povo fez nascer a contestação, a revolta levando a uma antipatia visceral em relação à liderança e a uma profunda crise de legitimidade.

E o velho truque da compra da paz social com a distribuição de “esmolas” generosas com os lucros do petróleo já não é mais possível, uma vez que o país enfrenta desafios fiscais severos desde a queda nos preços do petróleo, em 2014.

Leia também: Causas e soluções para o terrorismo islâmico (artigo de Marcelo Brandão Cipolla, publicado em 3 de julho de 2018)

Leia também: Estado, islã e mudanças sociais (artigo de Andréa Benetti, publicado em 2 de abril de 2017)

As divisas estrangeiras argelinas encolheram consideravelmente, caindo de US$ 194 bilhões em 2013 para US$ 96 bilhões em 2019; o crescimento econômico, que em 2014 foi de 3,8%, em 2018 registrou apenas 2,3%.

Uma vez que Bouteflika não vai brigar pela reeleição, a margem de manobra do regime aumentou um pouco, mas o povo parece acreditar que a renúncia presidencial é apenas uma forma de ganhar tempo para instaurar um sucessor próximo ao clã.

Bouteflika vai se abster de disputar o quinto mandato, mas está esticando o quarto e administrando a pseudotransição a que se referiu na carta. Sua renúncia é uma meia vitória para os argelinos, mas a verdade é que a elite político-militar e a burocracia continuarão a mandar no Estado. Pode até surgir um candidato que tranquilize os manifestantes, mas ele continuará sendo o produto de um sistema que mantém a Argélia em um estado permanente de transição.

Dalia Ghanem é analista política argelina e residente no Center Carnegie para o Oriente Médio, em Beirute.
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