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| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

De acordo com relatório recentemente divulgado pela organização civil mexicana Ordem, Justiça e Paz, 17 das 50 cidades mais violentas do mundo são brasileiras. O ranking, que leva em conta o índice de homicídios em municípios com mais de 300 mil habitantes, apresenta Natal (RN) em quarto lugar, com a impressionante taxa de 102,56 homicídios por 100 mil habitantes, seguida por Fortaleza (CE), em oitavo lugar, com 83,48/100 mil, e Belém (PA), em décimo lugar, com 71,38/100 mil. O protagonismo do Brasil nessa estatística macabra não pode ser recebido com surpresa: com mais de 60 mil mortes por ano, o país é campeão mundial em número absoluto de homicídios, ostentando uma média cinco vezes superior à mundial, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Somam-se a essa cifra 71.796 “desaparecidos” (em dez anos houve mais de 694 mil registros de desaparecimento, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017) e 2.666 latrocínios, crime cujo crescimento foi de 50% no período compreendido entre 2010 e 2016.

É claro que não faríamos feio caso o ranking em questão adotasse como critério outras espécies de crime que não o homicídio. Basta notar que no ano de 2016, somente nas capitais brasileiras, foram registrados mais de três assaltos por minuto, totalizando 1.726.757 roubos (quase o dobro dos 985.983 roubos registrados no ano de 2011). Vale dizer: a maioria de nossas grandes cidades é terrivelmente violenta, ainda que muitas delas não figurem na lista daquelas consideradas as mais violentas do mundo. A eleição do número de homicídios como critério de aferição da violência não se deve apenas à inquestionável primazia da vida em relação aos demais bens jurídicos, mas também a outro fator: o ato de “matar alguém” (tal é a descrição do Código Penal para o crime de homicídio) constitui a expressão mais pura, genuína e acachapante da chamada “violência associal”. E isso, caro leitor, é algo que nos assombra.

Tim Larkin, autor de When Violence is the Answer, reconhecidamente um dos maiores estudiosos da matéria no planeta, analisa o fenômeno da violência classificando-a em duas espécies: agressão social (“social agression”) e violência associal (“asocial violence”). A agressão social não visa à destruição de outra pessoa, mas, antes, à afirmação da condição dominante, à obtenção de vantagem ou elevação do status social. Um exemplo: nas brigas de escola, envolvendo bullying, que atraem a curiosidade de pessoas que instintivamente se reúnem para assisti-las, a excitação com a luta decorre da existência de informação social valiosa (ao menos na visão da plateia) a ser dali extraída: ela definirá a posição dos contendores na hierarquia da escola (o vencedor será carregado em glória e o derrotado reduzido à condição de pária). Esse tipo de agressão, observa Larkin, não é exatamente tolerado (em geral é punido), mas tampouco destrói a ordem social. Há, contudo, outro desfecho possível: a vítima do bullying já sofreu o bastante e mantém guardada para si a decisão de revidar. Não está interessada em brigar ou afirmar-se diante dos colegas. Ela simplesmente abre a mochila, saca um revólver e atira à queima-roupa na cabeça do agressor. Não há excitação ou gritos de incentivo na plateia. Há apenas pandemônio: todos fogem sem olhar para trás, pois inexiste qualquer informação social a ser buscada ali. Estamos diante da violência associal: ela nada tem a ver com comunicação ou remodelação das estruturas de ordem e poder. Pelo contrário: almeja a destruição da ordem. É o tipo de interação violenta da qual instintivamente fugimos, pois nela há apenas caos, horror e miséria. A morte, em vez de mero subproduto acidental, constitui seu único propósito.

Agimos como o sujeito que alimenta um crocodilo na esperança de não ser por ele devorado

A pedra de toque para distinguir as duas espécies de violência é a presença ou ausência de comunicação. Nos enfrentamentos que contemplam formas primitivas de comunicação social, os contendores procuram demonstrar como estão agitados, como são ameaçadores e o quanto estão dispostos a defender seu território (manifestações claras de dominância). Nessas situações de agressão social não há o desejo deliberado de mutilar, aleijar ou matar, enfim, de infligir um dano permanente ao adversário. O objetivo não é destruir, mas dominar. A violência associal, por sua vez, é de uma dinâmica brutal, silenciosa, súbita e inequívoca. É a agressão com uma barra de ferro até que a vítima pare de se mover, é a morte da vítima de um roubo já consumado pelo simples prazer de vê-la padecer. Nas palavras de Larkin, “se você é uma pessoa sã e sociável, pensamentos desse gênero podem deixá-lo fisicamente doente, pois você os reconhece por aquilo que são: o colapso de tudo aquilo que nós, como humanos, reputamos sagrado”.

Um caso que bem ilustra esse conceito é o assassinato do estudante Kaíque Abreu. Agredido quando voltava para casa após uma festa de carnaval em Salvador (BA), o jovem teve morte cerebral declarada em 14 de fevereiro deste ano, cinco dias após dar entrada no hospital. Imagens captadas por uma câmera de segurança mostram o ataque covarde, intempestivo e inapelável lançado pelo assassino Edson Rodrigues dos Santos, 24 anos, que afirmou à polícia haver desferido um soco e um chute na vítima para “descontar uma agressão” que sofrera de outra pessoa “na folia”. Esse fato – uma versão brasileira do famigerado “knockout game” existente na América – revela algo fundamental: enquanto a agressão social é evitável, podendo ser contornada com o emprego de nossas habilidades sociais, a violência associal nem sequer permite que nos expressemos. Dito de outro modo: quando não antevista de maneira a permitir a fuga, somente poderá ser contornada mediante incapacitação ou morte do agressor. Aqui desmorona nossa ilusão de que, mesmo cercados pela barbárie, estamos, de alguma forma, em segurança.

Como bem observou James Q. Wilson – um dos responsáveis pela revolução dos métodos de combate ao crime na América –, a criminalidade violenta (em especial aquela que envolve delitos cometidos por estranhos contra vítimas inocentes) é causa de atomização da sociedade, pois difunde o medo, isola as pessoas e impede a formação de comunidades humanas dotadas de significado. Há muito, no Brasil, deixamos de nos importar com isso. Abrimos mão de frequentar espaços públicos, obsequiando aos delinquentes o domínio de nossas ruas, praças e parques. Consentimos em viver confinados em casas e apartamentos com sistemas de segurança cada vez mais restritivos e dali saímos, confinados em nossos veículos (alguns blindados), para o confinamento de nossos locais de trabalho, permitindo-nos, eventualmente, a título de lazer, o confinamento no espaço asséptico de algum shopping center.

Do mesmo autor: Onde os heróis não têm vez (1.º de abril de 2018)

Leia também: O brasileiro e os bandidos (editorial de 4 de novembro de 2016)

Isso, é claro, para os mais afortunados. O trabalhador que não dispõe de condições financeiras para transformar sua casa numa espécie de maquete de penitenciária (com cerca elétrica, arame farpado, alarme, câmeras e monitoramento) está condenado a viver em permanente sobressalto. Quando seu lar é furtado, não entende como a subtração de um botijão de gás cujo valor equivale a 20% de sua renda mensal possa ser considerada “insignificante” pela Justiça, mas sente-se grato pelo fato de não haver sofrido violência. Para ele, todo dia de pagamento é sinônimo de aventura, ante a probabilidade nada desprezível de ser vítima de um roubo à mão armada no caminho para casa (esteja a pé ou de ônibus). Após perder, numa fração de segundo, o fruto do trabalho de um mês inteiro, possivelmente ouvirá alguma sumidade sustentando a tese de que há “uma lógica no assalto”, de que aquela expropriação representa a luta dos excluídos contra a “desigualdade social”. Mais uma vez, embora não compreenda a preconceituosa associação entre pobreza e criminalidade – a exemplo do pai e do avô, tudo o que faz na vida é trabalhar –, ele se mostrará grato pela dádiva de haver sido apenas assaltado e não espancado ou morto, pois, como eu ia dizendo, o fato é que capitulamos incondicionalmente diante do crime e tudo cedemos em troca da promessa de que, ao menos, nossa vida seja preservada.

Até o dia em que, insensível à nossa submissão, a violência associal nos atropela. Implacável, inclemente e aterradora, desmantela a ilusão de segurança como o impacto de uma onda destroça um castelo de areia. Só então percebemos a inutilidade de nossas renúncias. Constatamos que a ingenuidade pueril do incauto que, em nome da “paz”, entregou ao Estado as armas que, legalmente, deram efetiva segurança à sua família por gerações a fio, é irmã gêmea do delírio ativista que prega a legalização das drogas como meio de reduzir a violência. Ou, ainda, que a parvoíce da autoridade que defende o desencarceramento de sociopatas, na crença de que a impunidade aplacará seu ímpeto sanguinário, é em tudo idêntica à estupidez presunçosa do “especialista” que sugere o desarmamento dos policiais fora do horário de expediente, não obstante os estudos da Comissão de Análise da Vitimização Policial da PMERJ indiquem que, entre janeiro de 2016 e fevereiro de 2017, 33% das mortes de policiais militares de folga decorreram de execuções!

Si vis pacem, para bellum”. Em discurso memorável, proferido na Câmara dos Comuns no longínquo ano de 1938, Winston Churchill reverberava o provérbio latino, ao alertar para o fato de que “a manutenção da paz depende da acumulação de instrumentos de dissuasão contra o agressor”. Optamos por seguir o caminho contrário no combate ao crime. Abusando do direito de sermos pusilânimes, estimulamos a agressividade dos delinquentes. Agimos como o sujeito que alimenta um crocodilo na esperança de não ser por ele devorado. Os resultados dessa escolha falam por si. Se você ainda duvida, dê uma boa olhada em qualquer ranking de violência.

Diego Pessi é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e coautor de “Bandidolatria e Democídio – Ensaios Sobre Garantismo Penal e Criminalidade no Brasil”.
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