• Carregando...
 | /Reprodução
| Foto: /Reprodução

O fenômeno não é raro. Homem com seus 34 anos, duas faculdades, emprego estável, mora sozinho e se sente perdido. Não sabe muito bem o que está acontecendo, mas sabe que as coisas não andam como deveriam andar. O mesmo vemos naquela mulher de 29 anos, independente, carro novo na garagem, carreira em ascensão, corpo e mente em dia por conta da combinação de pilates e yoga, porém, quando se vê sozinha, uma angústia sem nome toma conta do seu peito.

Quando vejo casos como esses, é como se eu escutasse o ditado mais utilizado por minha mãe: por fora bela viola, por dentro pão bolorento. Também podemos lembrar do clássico “quem vê cara não vê coração”. Seja qual for o dito popular que se aproxime dessa realidade, o drama moderno é que a cada dia cresce o número desses perdidos sem causa.

O começo se dá na linguagem, no discurso da nossa época.

Pare por cinco minutos e preste atenção ao discurso cotidiano ao seu redor. Propagandas, reportagens, posts, fotos, matérias, músicas. Facilmente você descobrirá que todo dia somos bombardeados por fórmulas como “você é insubstituível”, “para conseguir algo, basta querer”, “seja quem você quiser”. Essas frases prontas não são novidades para ninguém, porém, já estão impregnadas em nossos fluxos mentais. Parece-me que antigamente elas tinham um objetivo consolador: em um mundo competitivo e sem perdão, alguém dizer que você tem valor – independente do resultado que alcance – deveria ser reconfortante.

Tudo o que conforta pode te estragar. E foi esse o nosso erro

Porém, tudo o que conforta pode te estragar. E foi esse o nosso erro. Ficamos parados diante dessa fonte inesgotável de conforto, ouvindo palavras agradáveis ao pé do ouvido, num looping eterno de afagos. Não bastou apenas escutar uma palavra ou outra de incentivo e voltar para o front da vida. Na verdade, é tão bom ouvir que sou único e maravilhoso que eu quero escutar esse mantra todo santo dia!

O discurso atual, como uma nonna zelosa, nos adulou e nos convenceu de que nós nos bastamos. Como bons piás de prédio, gordinhos, de bochechas rosadas, acreditamos nisso. Nós nos tornamos aquilo que há de mais irritante: mimados.

Saindo então dessa enxurrada motivacional, com o peito inflado de certezas convenientes, como um balão inflável fomos em direção daquela que nunca muda e nunca mente: a Realidade. Como a vida não é um mar de rosas, aqui começam as tretas. Pois aquele que carrega no peito a certeza de que foi, é e sempre será especial não vai desistir dessa ideia tão facilmente. E a realidade, meus caros, vocês já sabem, não deixa barato.

Nesse confronto, normalmente demoramos muito tempo para enxergar que nossa oponente não está errada. E aquele que tem coração humilde o suficiente descobre que a estrada do aprendizado sempre esmaga o ego. Mas, e se eu te disser que quebrar a cara e se sentir humilhado é o melhor caminho? Imagina o pior!

João Pereira Coutinho: Disforia de gênio: uma introdução (publicado em 26 de maio de 2018)

Leia também: A aposta na instabilidade (artigo de Diogo Fontana, publicado em 28 de maio de 2018)

O que vemos nessa segunda via – distante da humildade – são homens e mulheres quebrados por dentro mas ainda de pé. Engana-se quem pensa que isso é exemplo de coragem e bravura ou de superação e resistência, são pessoas que erguem a cabeça mesmo quando o mais digno era pedir ajuda. São homens e mulheres que acreditam tanto em si mesmos que se tornaram a medida de todas as coisas e afastam todos ao seu redor. E o orgulho é como um castelo medieval sem ponte: um fosso de solidão que te isola do mundo. Ninguém entra e ninguém sai. Quem está de fora não consegue dialogar (eu sei que você já tentou milhares de vezes e nunca deu certo, não é?) e o orgulhoso nunca sai do seu trono para escutar o que diz aqueles que o cercam.

Confesso que enquanto você é jovem é possível sustentar essa postura. Quem nunca foi um pouco nariz empinado na juventude? Ser orgulhoso e seguir a própria cabeça é até perdoável com menos de 25 anos – mas a vida não para aos vinte e cinco.

Então como acaba essa história? Como diria nossa saudosa presidenta: “nem quem ganhar nem quem perder vai ganhar ou perder; todo mundo vai perder”. Perdemos feio quando a crise dos 30 chega e a vida deixa de ser aquela avenida de tijolinhos dourados e se torna uma cruz.

Nossas convicções: O alcance da noção de dignidade da pessoa humana

Leia também: O feminino e o masculino em busca de sentido (artigo de Liseane Selleti e Fernanda Lisieux, publicado em 31 de maio de 2018)

Muitos sentem-se perdidos nesse momento pois é preciso olhar para fora para conseguir realizar qualquer mudança. E esse olhar é transcender o seu próprio umbigo. Reconhecer que há vozes de autoridade além da sua torre de marfim: fora dos nossos muros há pessoas que podem nos ajudar com os problemas que sofremos aqui dentro.

Quando não conseguimos sair de nós mesmos, somos vencidos por nossa crise existencial que, em parceria com o orgulho moderno, acaba por sabotar qualquer tentativa de melhora. Pois o maior dos problemas não é o vazio existencial que você pode carregar no peito – para isso Viktor Frankl tem o remédio –, mas antes é querer ser autossuficiente e acreditar piamente que você pode salvar a si mesmo.

Portanto, abaixe tua guarda, escute os outros, aceite que você é só mais um, aprenda com teus erros, ria de si mesmo, busque ser mais maduro, erga tua cabeça e vire gente grande. Esqueça qualquer crença moderna de autorredenção, você não é Deus – por mais que acredite nisso.

João Paulo Borgonhoni, fundador do site Os Náufragos é professor e psicólogo clínico.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]