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Num país tão dado a tornar tudo "obrigatório", fica até mal defender que conhecer a vida e a obra de José Bento Monteiro Lobato deveria ser uma exigência. Uma disciplina da escola. Tema de provas. De ruidosas maratonas juvenis. Mas bem poderia. O escritor foi um visionário, que fez seu Jeca Tatu chegar a rincões do país que jamais tinham visto um livro, para citar um de seus muitos feitos na consolidação de uma sociedade da leitura. Em miúdos, Lobato é um dos inventores do Brasil e temos de nos haver com ele.

Os exemplos de sua grandeza se avolumam, como se pode comprovar no projeto O furacão da Botocúndia, organizado pelo grupo do pesquisador Vladimir Sacchetta, para citar uma das iniciativas que se encarregaram de organizar os feitos de uma das personalidades mais solares da nossa história. Lobato é de fato inspirador, como mostra toda e qualquer pesquisa de aferição de leitura: é sempre ele nas primeiras posições, pontificando, lembrado por seu irresistível Sítio do Picapau amarelo. Um escritor amado num país de poucos leitores – isso diz alguma coisa.

Genialidade literária, contudo, não é prova de santidade, nem é preciso que seja. Como todo intelectual e artista às voltas com seu tempo, Monteiro Lobato abraçava polêmicas, aqui um eufemismo para falar nos escorregões, incorreções e confusões nas quais era um verdadeiro atleta. A mais conhecida de todas as "encrencas" foi o ataque à obra de Anita Malfatti, a quem colocou nas raias da paranoia. Em tese, o escritor teria levado a artista ao ostracismo. A biografia de Anita sugere que não. A história da crítica mostra que um comentário negativo não tem o poder de sepultar uma carreira. Fosse assim, não haveria nem Shakespeare.

E eis que, de repente, Lobato – descrito por muitos como um artista frustrado, daí todo o seu fel – tornou-se agora, tanto tempo depois, também um racista inveterado, cuja falha de caráter passou despercebida por milhares e milhares de leitores ao longo de todo o século 20. Desde 2010, o escritor está no centro de uma nova peleja: a que busca retirar o livro Caçadas de Pedrinho da lista de livros adotados pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola. As referências à tia Nastácia seriam ofensivas aos negros. De resto, a obra do escritor estaria, qual piolhos, infestada de outros tantos indícios de sua intolerância racial. O caso foi parar no STF, ao lado do mensalão, com pedido de recolhimento dos livros ou negociação – algo como rodapés explicativos e formação específica para professores lidarem com os estereótipos étnicos. São partes envolvidas o Conselho Nacional de Educação e o Iara – Instituto de Advocacia Racial.

O episódio desencadeou uma verdadeira "caçada a Bentinho", explicitando aspectos da biografia de Lobato até então pouco avistados. É o caso de sua ligação com a teoria eugenista, confirmada em cartas a amigos. Chega, num dos momentos mais surpreendentes, a embutir um elogio à Ku Klux Klan. Não é uma revelação agradável. Tudo indica que o escritor se distanciou desse ideário assim que o nazismo deu suas cartas na Europa, embora pese nunca ter se retratado. A seu favor contam outros tantos textos em que destaca a negritude, argumento usado por um de seus maiores defensores em meio a toda essa contenda, o cartunista Ziraldo.

O país se vê em tranças. Nos círculos mais ilustrados é quase unânime que Lobato deve continuar sendo lido, sem censura e sem correções, como as imputadas nos Estados Unidos a Huckleberry Finn, de Mark Twain. Melhor remédio para a mão pesada do autor para com os negros é ter professores preparados para explicar o homem e o mito, como se deve fazer ao tratar de dom Pedro I ou de Getúlio Vargas, dois vultos da nossa história, como se dizia. Dá para falar do Brasil sem eles? Não. O mesmo vale para Lobato.

Há quem considere que talvez Lobato não seja literatura para crianças, mas para adolescentes. Há quem sugira que seja de fato banido, como o escritor Alberto Mussa – que vê problemas semelhantes em Macunaíma, de Mário de Andrade. E não poucos lembram que é de toneladas a carga carregada pelo sistema de ensino, obrigado a lidar sozinho com todas as escolhas literárias. Cabe aos professores administrar o erotismo, o racismo e tudo o mais, sem o apoio de outros canais de leitura, como boas bibliotecas públicas. Elas seriam perfeitas para promover leituras mais livres, polêmicas, sem as limitações do ambiente escolar. Contar com esses canais, a essa altura, seria um alívio. Não há, afinal, pesadelo maior que pensar um país sem Monteiro Lobato, ele por inteiro.

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