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Meus leitores já devem ter percebido que, em minha coluna, há muitos contos de Machado de Assis. Não desejo comparar-me a ele, apesar de termos coisas em comum, como formação autodidata e origem lusitana (o grande autor dos romances e contos urticantes teve uma mãe lavadeira, nascida no arquipélago dos Açores, em Portugal). Mas explico: além de esse grande brasileiro, que abalou corações e mentes pelo mundo ocidental, ter sido meu autor de cabeceira, ele é o eterno vilão enquanto houver um mísero leitor prestes a enfrentar as temidas questões de Literatura dos vestibulares. Machado sempre “cai”, dizem, mas de onde?

Convido os leitores a fazer mais uma jornada pelas amplas plagas e voos sobre os contos imortais do nosso “bruxo”. Temos à disposição um tílburi ou um coche para cumprir o trajeto que nos espera. Qual o destino? Mais uma caminhada pelo campo linguístico do conto O Cônego, ou Metafísica do Estilo. Estão prontos? Então subam, pois a partida já foi dada. A ideia é ajudar a entender a beleza e originalidade dessas narrativas. Preparem-se também para os solavancos que levaremos em viagem por dentro e por fora do conto.

De pronto, a narrativa nos impõe duas situações distintas: uma, as armadilhas que o narrador espalha a esmo por todo o enredo (se é que existe um). A outra aponta para a necessidade de observar, com a lupa da crítica literária, o título da narrativa. Há nele questionamentos que ilustram os eventos a seguir.

O nosso autor gosta de judiar do leitor. Ele plantou algumas armadilhas para nos demover do intento de buscar na área da semântica o significado da palavra “metafísica”. O termo levanta desde já uma questão: o “estilo” estará na área desse importante ramo da filosofia, ou é o oposto? Para dirimir a questão, vamos ouvir do dicionário (muito prestativo, por sinal) a definição que Aristóteles consagrou: Metafísica é o estudo do ser enquanto ser e especulação em torno dos primeiros princípios e das causas primeiras do ser.

Machado dá pinotes pelos meandros da metalinguagem

Esse questionamento foi levantado porque o autor não é confiável. Em seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, ele “trapaceia” o leitor com a inexistente filosofia da “Humanitas”. Após pesquisar, descubro que essa corrente do pensamento simplesmente nunca existiu. Se o leitor duvidar, consulte o manual de filosofia. Entenderam? De fato, a metafísica trata do ser humano; não tem nada a ver com o estilo. E, por sua vez, esse termo também é conflitante. Segundo Buffon, famoso orador fúnebre francês do século 18, “Le stile c’est l’homme même”: “o estilo é o próprio homem” e não a metafísica.

Pingos nos is: o estilo contém em seu bojo espaço especial para malabarismos verbais. O sermão eloquente que o cônego Matias está a elaborar, primeiro nos desvãos da sua mente e, depois, no papel, é amostra da elevada exigência dos que querem convencer pela palavra; a arte da retórica.

De acordo com o linguista tcheco Roman Jacobson, em seu estudo das funções da linguagem, Machado dá pinotes pelos meandros da metalinguagem. Já temos algumas provas de que o autor nos está pregando alguma peça. Por quê? Porque ele quer melhorar o ser humano, “castigando-o”.

Vamos ver alguns detalhes do “desenredo”. O cônego Matias é desafiado a fazer um sermão de extrema responsabilidade. Como era vaidoso, sonha escrever uma peça de oratória que o levará aos pináculos da fama. Esse desejo o conduz ao desvario, que se espalha pelos compartimentos mentais.

Assim, ao detalhar melhor as técnicas da fala formal, o narrador, único personagem do conto, envereda por várias fantasias. Por exemplo, para fazer o leitor entender as questões levantadas, ele reveste a discussão com os panos quentes das técnicas linguísticas, tais como afirmar que “as palavras têm sexo”. Antes disso, já havia dito que os substantivos nascem em um hemisfério do cérebro e os adjetivos, no outro. Ou seja: o ato de escrever envolve a percepção de que, para obter bons resultados, é preciso que os termos e palavras “se aproximem” uns dos outros.

Vale lembrar que Matias, de início, não aceita o pedido. Porém, depois que se vê envolvido pelo fascínio da arte de criar, revela uma faceta essencial do ser humano: a vaidade. Queria brilhar sob os holofotes das palavras e figuras de retórica. O cônego chega ao cúmulo de criar duas personagens abstratas: Sílvio e Sílvia; o primeiro representa metonimicamente o substantivo; a segunda, o adjetivo. Amam-se. É claro, leitor, que isso representa o “casamento dos dois”. E, desta forma, o autor nos coloca em face da questão central: o poder imenso da linguagem e seus mecanismos de funcionamento, como a sintaxe, por exemplo. Todas as classes gramaticais sempre juntinhas e agarradas, em verdadeira lua de mel.

Esse desfecho salutar entre as “palavras personagens” é, enfim, o tão almejado estilo. Um trecho do Cântico dos Cânticos de Salomão abre a discussão que termina com essa união de opostos entre as “palavras personagens”. Caro leitor, seria hora de perguntar: e o idílio que o cônego constrói vem se mostrar à luz do céu e às brumas da alma? O que se sabe ao final é que o autor aponta para seu leitor e indaga: estamos preparados para adentrar no ventre macio das palavras? Parece-me que Sílvio e Sílvia (sempre nessa ordem) enfim se encontraram. Onde? No papel, é claro.

Eis aí, em linhas gerais, a prodigiosa viagem pelos desvãos do homem e vielas estreitas e fundas da linguagem. O leitor jamais será o mesmo depois do cansaço de andar por aí a perseguir palavras que são difíceis de alinhavar. E por onde estará vagando o cônego? Por esse mundo vasto, armado com uma rede para caçar palavras em lugar das borboletas. Silvia e Sílvio? Esses estão bem casados.

E os substantivos e adjetivos serão mesmos seus substitutos? Não se esqueça, amado leitor, que a metafísica não estuda o estilo, mas... o quê mesmo? O autor, o velho bruxo, fez essa confusão com o significado de palavra tão inacessível por desconhecimento? Ou ele está consciente da confusão que gera na cabecinha dos seus leitores e dos examinadores das bancas dos vestibulares? Machado sempre será Machado.

Será que Sílvio e Silvia continuam agarradinhos como um objeto direto gruda no verbo transitivo direto? Por exemplo: “Sílvio (sujeito simples) adora (verbo transitivo direto, predicado verbal) Sílvia (objeto direto)”. De fato, eles se conjugam bem, são transitivos. Matias, na igreja de sua paróquia, depois de ter desistido de compor o idílio que nunca saiu de sua cabeça, ensaia o sermão da próxima missa. Mas calma! Na análise sintática acima há um sutil detalhe a acrescentar. Como o objeto direto do verbo “ama(r)” é um nome próprio (Sílvia), o objeto direto aceita preposição e passa a chamar-se “objeto direto preposicionado”. Amém!

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