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Ainda não vi no horizonte uma pessoa que não tenha crescido ouvindo os mais velhos (geralmente a vovó ou o vovô) contar histórias que palmilham a aventura humana com histórias não “históricas”, pois visam à educação moral do ouvinte. Estou falando das fábulas e do mundo fantástico que depositam em nossa alma, como uma grinalda de palavras faiscantes.

Bem-aventurados os leitores que sabem a diferença entre uma lenda, uma parábola e um apólogo – como o de Machado de Assis que nos dá uma lição de moral, contando uma pequena narrativa em que uma agulha e uma linha discutem qual delas é mais importante. O autor enfatiza a inutilidade do diálogo entre essas ferramentas da costura. Elas só fazem o papel que lhes cabe. O resto é a burrice humana em ação. O papel de ambas é absolutamente igual. Portanto, a vaidade da agulha e da linha se aloja no campo da idiotice dos seres humanos. No apólogo, como é sabido, agulha e linha são instrumentos do ofício da costura que dialogam. Pode se dar vida a qualquer coisa. Urge agora falar de fábulas.

A fábula é um gênero textual no qual os animais são humanizados (e, portanto, têm voz). Esses personagens vivem episódios da vida, mas estarão sempre agindo como seres humanos. Diz a tradição que esse tipo de conto, mínimo, coloca as pessoas a viver as mais diferentes situações do cotidiano, com o intento de proferir juízos de valor. O gênero fábula tem suas origens na cultura grega mais remota. Ainda na madrugada ou no despertar dos primeiros voos da fantasia dos gregos arcaicos, os fabulistas começam a saga de revelar a condição humana, para moralizá-la. A fábula sempre nos conduz, mesmo que por meio de animais, a extrair a moral do que se narra.

Da lenda já sabemos serem elas ações significativas impossíveis de provar. O fato, de tão remoto, se perde nas areias do tempo. Lendas geralmente tratam da ocorrência de façanhas heroicas. Existem as folclóricas do imaginário. Uma saga de ferozes combatentes, como os “300 de Esparta” que morrem lutando bravamente nas Termópilas contra os persas, até a chegada de reforços de Atenas. As fábulas impregnam a cultura popular e nos remetem, por vezes, para um local ignoto e distante, onde as estrelas fulguram em dobro.

A parábola se aproxima da alegoria; foi criada e praticada pelo maior orador de todos os tempos: Nosso Senhor Jesus Cristo. Como seus primeiros fiéis são gente simples, ele repassa as verdades do Evangelho contando histórias que envolvem as ações do homem, para dali extrair uma verdade ou uma lição moral. Lembram-se da parábola do semeador? Jesus conta a seguinte parábola aos fieis que o cercam: “Certa feita um homem sai para semear. Ao espalhar as sementes, joga parte sobre o solo do caminho e os passantes esmagam os grãos, quando andam pela trilha. Uma segunda quantidade de grãos cai nas pedras e não vinga; outra é jogada em uma moita densa e abafada. Desta forma, as sementes não brotam e, portanto, nem crescem. Finalmente, uma cai em solo fértil e frutifica”. Cada leitor extraia a moral da história. Essas parábolas constam dos livros da Bíblia. Muitos não entendem a intenção do Mestre dos Mestres. Como se viu, a parábola é uma espécie de alegoria e também tangencia a fábula, mas, em vez de lidar com animais, põe em cena pessoas.

Esopo sobreviveria nos dias de hoje embrulhado em um cobertor esfarrapado sob alguma marquise, apesar de ser o “pai da matéria”.

Mas devemos falar também de fábulas. E não podemos fazer isso sem mencionar os nomes dos grandes fabulistas da cultura ocidental. Esopo é um deles. Ele viveu no século 5.º a.C. Há lendas sobre o fabulista. Dizem que foi escravo e aleijado. Antes dele, na remota época, não se conhece nenhum outro autor dessas narrativas didáticas. Há estudos que afirmam ser a fábula um tipo de texto meio fantasioso e enigmático porque, segundo a pesquisa, ela nasceu entre os escravos, que diziam coisas meio vagas, com sentido figurado (as fábulas), para se comunicarem e não permitir que os donos deles os entendessem. É provável que assim tenha acontecido. Esopo, submerso nas profundas entranhas do alvorecer da história, logo se destaca nesse gênero. Por ser o primeiro, os fabulistas que o sucedem sofrerão enorme influência do antigo escravo que aprecia contar histórias de bichos para moralizar o homem. Tudo meio alegórico. Das centenas de fábulas que escreveu, conhecemos mais de perto a do cão que carrega um pedaço de carne, A cigarra e a formiga, A rã e o boi, A galinha dos ovos de ouro, A raposa e as uvas e O cabrito e o lobo.

Alguns dos leitores que já tiveram contato com o assunto devem ter a impressão de que esses títulos são de outros autores. São familiares. O grande fabulista romano Caius Julius Faedros, ou apenas Fedro, viveu em Roma, de 15 a.C. a 55 d.C. Mais para os tempos atuais, vamos encontrar o herdeiro dos dois em La Fontaine, que vive no século 17. Apesar da influência de Esopo sobre ambos, Fedro o imita, mas também cria fábulas imortais. Dizem que o fabulista romano também era escravo na Macedônia. Foi libertado pelo imperador Augusto. Suas fábulas mais importantes são obras primas do gênero: O lobo e o cordeiro; Uma cabra, uma vaca, um leão e um burro. O fato não configura prática do crime de plágio ou de falsidade ideológica. O pensador e moralista francês La Fontaine fez versões de O lobo e o cordeiro, O corvo e a raposa e A cigarra e a formiga.

Essas fábulas ainda resistem apenas na cultura popular. Praticamente desapareceram. Depois de La Fontaine, não se tem notícia de outros autores de relevo. Hoje o gênero continua “impávido colosso” apenas no seio dos livros escolares, cujas traças, de tão velhas, já descansam em algum abrigo de idosos. Esopo sobreviveria nos dias de hoje embrulhado em um cobertor esfarrapado sob alguma marquise, apesar de ser o “pai da matéria”. Estes são os novos tempos. Sempre adorei essas fábulas nas quais os animais imitam os homens. Os bichos costumam se decepcionar.

Para ilustrar o leitor, vou sumariar uma fábula famosa e deixar que descubra a moral e coloque sua resposta nos comentários, logo abaixo da nossa coluna.

O corvo e a raposa

“Um corvo e uma raposa protagonizam um fato interessante. Os dois se encontram em uma situação bem atípica. A raposa (Maria da Silva), sempre esperta e faminta, caminha pelo campo, quando vê o Corvo (João Antônio) trepado em um galho, carregando um enorme pedaço de queijo no bico. A raposa, ‘babando de fome’, pensa em como tirar-lhe o queijo. E começa a adulá-lo. Elogia a qualidade das aptidões canoras da ave carniceira. Depois de vários elogios e de um pedido da raposa para que ele desse ‘uma palhinha’, o corvo só solta uns croc, croc, croc, mas não larga o queijo. A volperina insiste, dizendo que a voz dele era famosa. Assim o corvo, seduzido pelos elogios, profere um CROC maiúsculo e solta o queijo. O resto já sabem: a raposa come o queijo e o corvo fica na saudade.” Por quê?

Para encerrar, vou recontar-lhes uma diminuta história que lembra a fábula. Meu pai já me contara essa passagem. Os galegos são um pouco mais pobres que nós e alvos de zombaria por parte dos portugueses de minha aldeia. Vivíamos inventando chacotas para demonstrar o baixo nível social desses espanhóis honrados. “Uma vez, um galego, ao passar sobre uma velha ponte romana, sob a qual há um metro e meio de água, faz o jovem estrangeiro deter-se para apreciar o reflexo da lua na água parada. Fica fascinado com a beleza do reflexo do disco lunar na água. Somada à fome que sente, atira-se na corrente para apanhar o que lhe parece ser um queijo. Está por lá até hoje.” Resta perguntar ao leitor: qual seria a moral desta situação que oscila entre o humor e a ironia e a sátira?

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