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No romance histórico Esaú e Jacó, de Machado de Assis, duas senhoras veladas chegam ao Morro do Castelo. Lá, a Cabocla, uma vidente, atenderá as senhoras recém- chegadas. Todos sabem que o Rio de Janeiro tem lado negro e outro enluarado. As senhoras encapuzadas movem-se com cuidado.

Uma se chama Natividade; a outra, Perpétua. São irmãs. Descem com discrição da carruagem, porque o que fazem vai contra as crenças católicas das duas. Movem-se com recato e com temor. Já fizeram o que tinham de fazer. Estão fazendo algo condenável pela Igreja Católica: uma consulta espírita.

A questão é que Natividade teme pelo futuro dos filhos gêmeos idênticos: Pedro e Paulo. A mãe quer saber como será vida deles, porque brigam desde cedo, ainda no útero. A consulta do espírita é afirmativa e positiva: os dois hão de brigar até a morte da mãe, mas serão pessoas importantes. Pedro e Paulo realmente não vivem em harmonia. Por isso serão desafetos até a morte.

Mas a mãe acredita que vai reconciliá-los. Essa postura de Natividade, esposa de Santos, um banqueiro próspero, está desde já fadada ao fracasso. A vida dos gêmeos vai ser uma rinha até o fim. Embora gêmeos idênticos, eles exibem temperamento, ideologia e posições políticas absolutamente discordantes. E a guerra ainda está só iniciando. Como uma jiboia se expande e se enrola nos gêmeos em seus pesadelos durante o sono, é preciso protegê-los. E será assim até a morte de Natividade. A certa altura do enredo, surge um complicador grave: os gêmeos, já adolescentes, se apaixonam perdidamente por Flora – e ela por eles. Não há escolhas possíveis. Flora não consegue se definir nem por um nem por outro.

A indecisão dos gêmeos e de Flora representa simbolicamente o atraso na modernização do país, que é abortada. Retrocedendo um pouco no enredo, vamos nos deparar com Santos, que desejava uma confirmação do que dissera a cabocla sobre o destino dos filhos promissores. Quanto mais crescem, mais aumenta a animosidade entre os dois. Não é à toa que Natividade afirmava que os dois capetinhas se espancavam ainda dentro do útero.

“Esaú e Jacó” talvez seja o mais alegórico e metonímico livro de Machado

Seria de se esperar que os gêmeos, tendo crescido, se voltassem para a política. Em partidos opostos, é claro. Paulo se torna advogado e vai defender as causas liberais na Câmara dos Deputados. Pedro fará o oposto: ele é médico, conservador e adepto da monarquia. Essa polarização vai criar muitos infortúnios.

Os pais de Flora, Batista e dona Cláudia, não entendem o comportamento da filha. Há quem afirme que ela se apaixona pelos garotos porque o pai deles é rico, embora seja um pai ausente. Batista passa a vida tentando uma boa colocação na administração pública, um “carrapato oficial” cuja designação nos conduz a um sinônimo, o “fisiologismo modernista” que dilapida os recursos da nação para buscar sofregamente minguados recursos ainda não liberados. As mazelas são muitas. Tudo para praticar a mais cínica drenagem dos minguados recursos do Brasil. O quadro não se alterou muito desde lá. Mas o maior pusilânime, corrupto e chegado a levar vantagem em tudo foi o banqueiro Santos. Tem a coragem de dizer ao povo que não há juros. Todos os maus brasileiros querem sugar as tetas da nação onde reina soberana a vaca leiteira estatal. Tempos de Custódios, de Batistas, de Santos. O elenco de Esaú e Jacó se movimenta em busca de poder, cargos, empregos, benesses.

Enquanto escrevo, meu filho Eduardo exclama: “Pai, que horror! Então este país não muda nunca! Não seria melhor voltarmos para Portugal? Lá pelo menos todos conhecem os poucos ladrões que atuam no ofício e a gente conhecia as pessoas com as quais se dava bem”. “Isto cá é uma zorra total”, reclamava em altos brados o Conselheiro Ayres, que volta à cena quando foi diplomata em Bogotá, na Colômbia. Aqui se rouba até pirulito de criancinhas tetraplégicas. Como proferia nosso grande poeta Olavo Bilac, “Jamais verás país como este!”

Outro fato socialmente avassalador, a Proclamação da República, traz todos os transtornos que já conhecemos: os gêmeos estarão em posições opostas e beligerantes durante as atividades na Câmara dos Deputados. Os dois sobem à tribuna apenas para deixar cientes os correligionários de que as coisas não mudaram e nem mudarão tão depressa.

Ao fim, não se sabe do que morre a bela Flora. Permito-me afirmar que morreu porque seu amor não tem objeto. Ela considera-se estéril, fato que Rita confidencia à irmã do Conselheiro Ayres. Interessante que, feitas as exéquias, os gêmeos tratam de frequentar o cemitério em horas diferentes, de tanto que se odeiam. Pedro e Paulo, vendo a mãe já bem doente, fazem um trato para visitá-la já agonizante. A mãe, com um pé no Purgatório, pede aos filhos que lhe deem as mãos e fá-los prometer que voltariam a ser amigos. A trégua dura só um mês.

É hora de falar sobre leituras alegóricas, pois este livro talvez seja o mais alegórico e metonímico de Machado. Os nomes dos personagens são altamente elucidativos do ponto de vista semântico. Já no título Esaú e Jacó há ouro puro. Todos sabemos que os personagens bíblicos foram inimigos figadais. Brigaram por posse de terras e um prato de lentilhas, pelas quais Esaú vende seus direitos de primogenitura para o irmão, Jacó. Quem quiser entender melhor o bololô que adentre pelo Velho Testamento. Esaú e Jacó serão inconciliáveis para sempre. Flora, na mitologia pagã, lembra abundância, fartura que é ilustrada por uma cornucópia. A filha de Batista e dona Claudia representa a imagem de um Brasil que poderia ser moderno. Por que não ficou? Porque fizemos escolhas erradas para decidir o melhor sistema político para a nação.

E o Conselheiro? Ele é sempre neutro na vida como um todo, mas é o personagem-chave, porque sabe tudo dos outros personagens. O caso do português Custódio é ilustrativo. O luso tinha uma confeitaria, onde servia republicanos e monarquistas. Aconselhado pelo irrequieto diplomata Ayres na questão da troca e pintura da nova placa, o português crava: “Confeitaria da República”. Mas, para poder vender a todos, é preciso não contrariar ninguém. E, aconselhado de novo por Ayres, muda a decisão para atender aos clientes do Império; aos clientes da República, alça a voz e proclama: “A placa definitiva será apenas ‘Confeitaria do Custódio’”. Ele não está nem aí para as placas: o negócio dele é vender para todos. É um homem pragmático.

O dr. Pedro nos lembra um homem da época de Cristo que administra a nascente Igreja conservadoramente. O nome remete a pedra, logo dureza, solidez, estabilidade. Por isso Jesus lhe deu o poder de dirigir a Igreja. Os nomes que Machado insere na história sempre remetem a alegorias. Nenhum nome é tábula rasa. O banqueiro Santos, um sacripanta capitalista, não tem nada de santo, pois não passa de um agiota e explorador. Ele chegou a esse status praticando a usura. A mãe dos gêmeos, Natividade, e a tia Perpétua também têm significado alegórico: natividade que gera e aquele que veio para ficar. Custódio representa o capitalista e o oportunista. Compra os pães dele quem pode; quem não pode se sacode.

Machado dá-nos, assim, um vasto retrato do Brasil do Segundo Império que anda aos trancos e barrancos. Por isso a crítica afirma que este livro é o mais profundo e completo legado que nos deixou. Os jogos de interesses antecipam as lutas que se travam em torno do poder. Republicanos ou monarquistas? Estão abertas as apostas. Uma visão mordaz e corrosiva vaga pelas planícies do Brasil que procura se estender e modernizar. Acabada a narrativa, estando os nossos personagens na Praia de Copacabana, o quadro está completo. O desfile da pátria remontada aparece com todos os companheiros. Salve-se quem puder! Hoje é dia de baile na Ilha Fiscal, vamos lá! Os irmãos Pedro e Paulo tomam uma caipirinha de vodca e saem abraçados da Câmara. O Conselheiro Ayres sabe que os gêmeos fizeram as pazes. “Nem a pau!” O diplomata cantarola uma canção e ajeita um cravo fresco na lapela. E sai dançando uma polca do personagem Pestana, aquele sujeito que odiava a fama. E a vida prossegue.

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