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Há clássicos, como as epopeias, que merecem ser analisados. Antes de enumerar o que para mim são os clássicos, é preciso perguntar detidamente o que é de fato uma obra literária clássica e perder-se nos cumes das recordações históricas, para mergulhar na conceituação das epopeias. Defini-las não é tarefa fácil, porque elas estão agarradas às paredes viscosas das lendas. A epopeia acompanha a humanidade desde seus primórdios. Em princípio, as epopeias são geralmente escritas em versos. Nelas, tudo tem de ser grandioso. Nos tempos de Homero, eram cantadas, por ele ser cego. Apesar disso, o poeta consegue trazer a Ilíada e a Odisseia até nossos dias.

Presume-se que algum dos seus ouvintes deva ter transcrito os versos orais do grego arcaico para os livros da época. É aceitável a ideia de que ele se faça acompanhar pela cítara, para contar as façanhas da Guerra de Troia, em dois relatos que transitam pelas estradas das lendas até hoje. Para dourar mais esse fato notável, comenta-se que o cantor da Ilíada e da Odisseia pode não ter existido. A história da guerra de Troia, a odisseia e a volta dos heróis derrotados para suas ilhas, como Odisseu, põem o Mar Mediterrâneo na base da poesia clássica. Por certo, os poemas de Homero não foram escritos por ele, mas repassados pela tradição oral. Com o tempo, a epopeia emerge a partir da formulação de sua estrutura poética.

No Brasil colonial aparecem duas epopeias, similares na forma às europeias, mas sem a qualidade das mais antigas

Epopeia bem mais recente, Os Lusíadas são dedicados ao rei de Portugal dom Sebastião. Camões invoca os deuses e musas ligados ao mar, como Tritão, Netuno, Adamastor e a musas Nereidas. O maravilhoso pagão de Os Lusíadas é o mundo das divindades que intervêm a todo momento na ação da narrativa. A maior parte desse mundo arrola fatos históricos que a saga dos lusos fecha com uma conclusão e apelo. Na parte final, já voltando da Índia para Portugal, ocorre o episódio da Ilha dos Amores. A turma diria hoje que é uma “viagem” essa ilha, cheia de encantamento e amores diáfanos e platônicos. Esse poema épico português é escrito em versos decassílabos clássicos, com a acentuação na sexta e décima sílabas. O tema é a viagem de Vasco da Gama às Índias, até a cidade de Calicute (hoje Calcutá). O herói é o próprio Vasco.

A conhecida obra revela uma característica importante: a imitação dos clássicos antigos, especialmente da Eneida, de Virgílio. Essa imitação ou mimesis do grego faz parte das características do poema épico. Virgílio enaltece o feito do herói Eneias, que, fugindo da Guerra de Troia, resolve fundar Roma. Reparem nas semelhanças entre o primeiro verso decassílabo de Virgílio em latim (Arma virunque cano, ou “Eu canto as armas e o varão”) e o d’Os Lusíadas (“[eu canto] As armas e os barões assinalados”). É praticamente uma cópia, mas é mais imitação. Essa técnica não configura plágio, porque a poesia clássica prega a imitação dos clássicos arcaicos.

No Brasil colonial aparecem duas epopeias, similares na forma às europeias – imitadas ao longo da história da cultura ocidental –, mas sem a qualidade das mais antigas. Uma é o poema O Caramuru, de Santa Rita Durão, que conta a história do casamento do náufrago português Diogo Álvares Correia com a filha do cacique. A bela índia Paraguaçu se apaixonou pelo estrangeiro. Ambos resolvem viajar para a França, em cuja corte se casarão. Moema, outra silvícola apaixonada por Diogo Álvares Correia, entra em desespero. Vai atrás deles nadando, se agarra ao leme e se afoga, tentando subir na caravela. Do ponto de vista formal, o poema é uma imitação pobre de Os Lusíadas. Quanto ao enredo, sobra mediocridade. Um dos poucos pontos altos do poema é a introdução do nativismo, diga-se pré-indianismo. É, também, precursor do Romantismo, cujos traços já são detectados no poema.

Ratifico aqui que essas epopeias, incluindo O Uraguai, de Basílio da Gama, não podem ser encaradas como candidatas a fundar a língua nacional. Apesar de serem nativistas, ficam muito longe de ajudar na consolidação da língua da pátria brasileira. Em outra ocasião, já disse que há pouco o que achar na literatura colonial que seja interessante para dar matizes universais ao português do Brasil. Há várias obras e autores mais encorpados na fila para erigir um idioma digno de ser nacional. Fiquemos, por enquanto, com Os Sertões, de Euclides da Cunha; toda a produção realista de Machado; e, de modo geral, a produção romântica, que forja o ufanismo nas letras desta terra abençoada por Deus e bonita por natureza.

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